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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Nina Berbérova, "A Ressurreição de Mozart" (Ambar, 2004, tradução de António Pescada, 2,5 euros em 2012 [vale a pena]). Uma pequena narrativa escrita ainda em 1940, deixando-nos a invasão alemã de França, e a debandada civil aquando da queda de Paris. Tudo vivido por um pequeno grupo de russos residentes ("russos brancos", dizia-se em tempos). Diante do espanto acontecido surge a ideia de convocar o(s do) passado, porventura para entender o presente. Ou para cobrar aos profetas as suas profetices:
"Isto não deve ser encarado com frivolidade. Eu aproveitaria a ocasião para trazer Lev Tolstoi a este mundo de Deus. Não foi o senhor, meu caro, que negou o papel do indivíduo na história? Que afirmou que não haveria mais guerras? E não foi o senhor, meu caro, que mostrou cepticismo acerca da vacinação contra a varíola? Não, agora não se esquive, venha ver o que resultou de tudo isso." (13)
jpt[Sergei Bondarchuk como Pierre Bezukhov]
[Lev Tolstoi, Guerra e Paz, livro IV, Lisboa, Editorial Presença, p. 254 (tradução de Nina Guerra e Filipe Guerra]jpt"Nas suas relações com Villarski, com a prima princesa, com o doutor, com toda a gente que agora encontrava, Pierre manifestava um novo traço de carácter com que cativava a simpatia de todos: reconhecia a todos a possibilidade de pensar, sentir e ver as coisas à maneira de cada qual; reconhecia que era impossível dissuadir uma pessoa com palavras. Esta particularidade legítima de cada um, que dantes enervava e irritava Pierre, era agora a base da simpatia e do interesse dele pelas pessoas. A diferença, por vezes a contradição absoluta dos pontos de vista de uns em relação aos outros e ao modo de vida de cada qual, provocava-lhe um sorriso irónico e meigo."
Acabo de rever esta série televisiva de 1972, a Guerra e Paz (com um jovem Anthony Hopkins como Pierre Behuzov), 20 episódios produzidos pela BBC. Vira-a em miúdo, aquando da sua apresentação na RTP. Na altura uma maravilha. Agora um pouco envelhecida, confesso. Mas mais do que justificável - e se o texto base é grandioso diga-se que o argumentista da série fez um belo trabalho.
Para quem não saiba (haverá?) o romance (e a adaptação televisiva) decorre na Rússia durante as guerras napoleónicas, cobrindo um período entre 1805 e 1820 (pois tem epílogo). Talvez por isso eu tenha ficado surpreendido quando a "episódios tantos" a lânguida mulher do fantástico (alter ego tolstoiano?) Bezuhov se indigne por o seu amante não lhe telefonar, segundo me informaram as legendas em português ali disponibilizadas. Certo é que alguns episódios depois o telefone foi abandonado pelas personagens - porventura por efeitos das devastações da guerra. Ou terá sido outro o autor das legendas? Fico-me na dúvida ...
jpt
Nunca percebi o hábito corrente (e muito vísivel) de transportar livros grandes (muitas vezes intitulados best-sellers) para serem lidos nas férias. Sempre me pareceu que a ventania arenosa, as cíclicas idas a banhos, as caminhadas desentorpecedoras, as cervejas muitas, as besuntadelas de creme protector, o apelo das crianças e os dos vendedores ambulantes, o "esplanadismo", uma-que-outra beleza que passa, enfim um não sei quantas coisas que vão acontecendo nesses feriados, essa estafa de estar em férias, implicam que o pobre leitor vai perdendo o fio à meada literária (presumindo que esta existe), confundindo personagens, esquecendo tramas, trocando episódios, derivando pensamentos, tudo aquilo que presumo se vá acumulando nas centenas de páginas quando agregadas em monovolume. E já nem falo do peso do livro, a transportar no seio de toda a tralha inútil que acompanha o veraneante.
Em assim sendo para mim as férias são o momento de ler pequenos textos, o sempre temido livro de poesia, os mais que amados contos curtos, até a novela, as crónicas. Coisas de andar na mão, até no bolso, próprio ou no da mochila, de se ler aos bocados com vagares. E até, ao sol ou às estrelas, de ficar a ruminar algo que se acabou de acabar, fruir. Sem ficar para o dia seguinte ...
Vem tudo isto a propósito da recente ida a Inhambane, mais exactamente à praia de Barra. Onde encetei o saco por este Tolstoi (A Morte de Ivan Ilitch, Quasi, 2008, tradução de Adolfo Casais Monteiro).
Para quem não leu resumo que o entretanto falecido Ivan Ilitch é um homem de qualidade, juiz competente, cumpridor de obrigações profissionais e sociais. Certo é que o seu mimetismo mundano afirma o seu desejo de aceitação e, até, de ascensão social. E nesses passos, distraidamente, acaba por esvaziar a sua vida afectiva e espiritual, por não se cumprir como pessoa. Ainda assim caminha sereno pela vida, recompensando-se em pequenos prazeres e rotina laboral. Subitamente, aos ainda jovens 45 anos, cai doente ("um rim flutuante", dir-lhe-ão os médicos) e morre, após breves três meses de terrível agonia (muito realisticamente descrita).
Da trama retiro esse retrato da morte lenta, rara na literatura, principalmente a dos tempos de uma outra medicina. Mas também encontro o velho Tolstoi moralista: pois se Ilitch começa por recusar a morte, a sua pertinência ou justiça, logo os pavores da agonia o fazem entender que desperdiçou a vida devido ao seu apego pelas convenções, a um conservadorismo materialista e hipócrita, no fundo a um desleixo espiritual (simbolizado no episódio da representação de Sarah Bernhardt, a que a família assiste deixando-o só no leito da morte). Neste caminho é o Tolstoi da renúncia que se afirma, mas também o da valorização naturalista (e como tal desvalorizadora) dos camponeses: a única personagem piedosa (solidária, diríamos hoje) é o criado Guerassime, que diante do sofrimento e da morte ostenta uma naturalidade até irreflectida, e por isso verdadeiramente humana. Só nesse camponês - e, já no final, no filho criança Ilitch - o autor reconhece humanidade e amor, ainda não esmagados pelas convenções, pela civilização.
Sorrio no fim diante deste moralismo extremo, adversário da sociedade, elogiando a natureza campónia, assim explicitamente associada à infância. Mas depois não deixo de, incomodado até, me perguntar: "mas que raio faço eu, exactamente aos 45 anos, a ler tamanho drama nas praias de Inhambane"?
"Tragam-me um best-seller!", terei exclamado.
jpt
"A lisonja constante, ostensiva, contrária à evidência, das pessoas que o rodeavam, tinha feito com que ele [Imperador Nicolau] já não visse as suas contradições, já não estabelecesse correspondências entre, por um lado, as suas acções e palavras e, por outro, a realidade, a lógica e o simples bom senso, mas estava absolutamente convencido de que todas as suas ordens, mesmo que fossem disparatadas, injustas e incompatíveis entre si, se tornavam sensatas, justas e compatíveis só por serem emitidas por ele".
[Lev Tolstoi, Khadji-Murat, Lisboa, Cavalo de Ferro, p. 110]"Ninguém sequer falava do ódio pelos russos. O sentimento que experimentavam todos os tchetchenos, das crianças aos velhos, era mais forte do que ódio. Não era ódio, mas sim uma recusa em reconhecer aqueles cães como seres humanos e era tanta a aversão, a repugnância e a perplexidade perante a crueldade absurda destas criaturas que a vontade de as destruir, tal como a vontade de destruir ratazanas, aranhas venenosas e lobos, era um sentimento tão natural como o instinto de conservação".
[Lev Tolstoi, Khadji-Murat, Lisboa, Cavalo de Ferro, p. 124]
"Ah! É preciso que eu seja sincero. Não me sinto, no fundo do meu ser, completamente liberto da noção do patriotismo. Por atavismo e por educação, persistem em mim, contra minha vontade, os restos de um sentimentalismo egoísta. Torna-se-me preciso fazer intervir a minha razão e recordar o meu dever essencial; e é então que eu digo a mim próprio, sem nenhuma reserva de consciência, que não existe no mundo razão alguma que seja superior á razão da humanidade."Leão Tolstoi, O Que Eu Penso da Guerra (Guerra Russo-Japoneza), Lisboa, A Editora, s/d,(1904)