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Alice in Genderland

por jpt, em 22.05.10

Vi a Alice de Tim Burton, dita "O Chapeleiro Maluco". Também li coisas sobre o filme, uns gabam os "efeitos especiais" outros Tim Burton, indiscutível, e o actor Depp, muito do agrado das e dos espectadora/es. Daí que segue a minha opinião (abaixo o anúncio):

A qualidade do filme é ser sintomático. Se nenhum filme é etéreo há alguns que abusam no gozo com que ostentam as grilhetas que os prendem ao dia-a-dia - é o caso. Recentemente li algures um qualquer intelectual (do qual não fixei o nome) referindo-se ao filme dizendo que a obra de Lewis Carroll não é para crianças, pois estas não conseguem compreender o surrealismo que ali vai. Tosca opinião, certo que a Alice de Carroll não é só para crianças, mas também é - e ainda bem que o é, espero bem que a muitas as "alicie". E este tipo de afirmações presume a homogeneidade dos leitores, que todos compreendem uma obra da mesma forma, que esta tem apenas um nível de leitura - mas não contamos nós o "Capuchinho Vermelho" às pobres crianças, assegurados da sua candura?. E há gente que fala coisas destas e ganha a vida anunciando o que pensa ... Refiro isto pois fui ver o filme em família, pensando que o filme também era para crianças.

O fundamental do filme assenta em dois pontos:

a) um emprobrecimento da imaginação. O onírico radical de Carroll é transformado num combate sanguinolento entre o bem e o mal, totalmente em contramão ao original. Ou seja, como fazer uma adaptação da obra literária? Dar-lhe sangue e porrada, quanto mais tétrico melhor (é absurda a caminhada de Alice sobre o fosso de cabeças decepadas - ainda se fosse o Russell Crowe ...). Para mais tudo isso encerrado no complexo mitológico britânico, a constante Excalibur mais a necessária morte do dragão, história incessantemente vista e contada. Uma pungente pobreza. Onde Carroll colocou densidade (até violenta) Burton põe, limitado, a intensidade (da violência física).

b) a filiação do livro ao idioma do "género" (gender). Alice é transformada numa campeã do bem, melhor dizendo numa paladina guerreira. O papel de paladino, do vencedor da hidra do momento, é tradicionalmente de um homem, o herói. Agora Alice não é apenas a protagonista, não é apenas a heroína sonhadora. É mesmo a paladina, excalibur na mão, actualização de Lancelot, ali decepando cabeças. Pura actualização, em versão "género", dos velhos mitos. Depois, saída da toca, do mundo onírico e subterrâneo, Alice recusa o "bom" casamento que lhe propõem e, muito british colonial, parte como se o jovem rapaz aventureiro de tantas outras histórias (por ex. Jim Hawkins da "Ilha do Tesouro" de Stevenson), para a distante China. Onde Carroll punha uma viagem à profundidade do "eu" (do "nós") põe Burton uma viagem ao distante exótico (do "eles", chineses). Onde Carroll punha uma menina (como complexidade do "eu" de sempre) põe Burton um unissexo (como a "lisura" do "eu" de hoje), tipo meia-estação de armazém de roupa.

Com toda a certeza (os admiradores de Depp a isso obriga) virá a sequela. Já imagino a Alice post-China, pós-colonial, que nos será oferecida. Completamente de acordo com as equidades hoje correctamente obrigatórias. Porventura retirando a única "incorrecção" deste filme - a fealdade física (ainda) associável à maldade. E muitas outras "ex-fracturantes" inovações. Verão. Depois contem-me, que já não darei para esse peditório.

jpt

publicado às 18:13


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