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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Já partilhei a fotografia (que encontrei aqui) no facebook. Uma delícia, explicitando o vigor e a argúcia dos utilizadores da língua. Não o dos foleiros estrangeirados do "reveillon" (um termo amaricado que sempre abominei), não o dos finórios sabidos dos prontuários. A língua vive assim, longe das caganças e das legislações lusófonas. E aqui está, até que enfim, uma palavra cheia de dignidade para referir "festa de passagem de ano". Adopto.
Que o vosso revelião tenha sido alegre, e que o próximo ainda o seja mais.
No facebook partilho a notícia sobre "A Música Portuguesa a Gostar de Si Própria", algo que me parece muito interessante, que acontecerá em Lisboa durante o mês de Dezembro. Passarei o Natal por lá, espero poder visitar o evento. Como não podia deixar de ser mando a "porrada" no nome do estabelecimento que acolhe o acontecimento, a "bluestation" da Portugal Telecom, situada na Baixa-Chiado (que não se chama nem Downtown, nem Downtown-City, sei lá porquê). É um nome que me irrita, e já aqui o disse, na sequência da minha super-irritação com a mania de anglofonar o nome dos estabelecimentos comerciais (e não só) em Portugal, o que acho uma pinderiquice brotada meio do arrivismo meio das patacoadas da rapaziada do marketing e relações públicas (a esmagadora maioria dos quais anda agora um bocado aflita apesar do seu linguajar inglês, e de alguns terem visitado Nova Iorque).
Na sequência disso Alexandre Pomar e Graça Gonçalves Pereira, gente a quem prezo, por diferentes motivos, de confraria bloguística o primeiro, de amizade e respeito a segunda, zurzem-me forte e feio, entre o canelarem-me de purista e o deixarem entender-me como um vil elitista.
Então respondo assim, com um exemplo desta semana. Estou a falar num painel de uma conferência, aqui em Maputo. Boto a minha parca faladura, no meio de outros quatro participantes. Na sala estão algumas dezenas de assistentes, entre os quais alguns amigos. Chega a altura do debate, nunca há verdadeiro tempo para isso mas enfim, é quase um ritual isto do "espaço para debate". Então, diz o companheiro moderador, pede-se a quem queira colocar uma questão (ou mesmo só um comentário) que se identifique (aquilo do nome e da instituição, do que faz também). Sucedem-se as questões. Até para mim, duas ou três pessoas têm a gentileza de me interrogar, símbolo-metáfora companheira, anunciando que me escutaram. Um deles, jovem colega que desconheço, avança. Antes da questão enceta pelo nome e anuncia que faz "post-colonial theory". O meu "ai o caraças!!!" fica mudo mas explode-me um, mui educado, entenda-se, "perdão, não percebi, importa-se de repetir?". O jovem, convocado, lá diz "teoria pós-colonial". Depois lá faz a sua pergunta. Absolutamente típica de quem se diz fazedor de "post-colonial theory".
Sei, divinatório, que um dia se passeará pelos corredores dos e-mails anunciando-se candidato a piagedi. E depois como possuidor de piagedi. Enquanto vai fazendo papers. Sei também, porque carrego meio século e muita azia, que não afrontará em nada, mesmo nada, aqueles que lhe aprovarão as candidaturas ao tal piagedi. E os que, depois, lhe aclamarão o tal piagedi. E lhe aturarão os papers. Nem tampouco criticará os fazedores da "post-colonial theory". Seguirá manso. Pois é essa mansidão o que este pobre seguidismo simbólico-linguístico anuncia. A volúpia de prescindir dos instrumentos (mais ou menos) próprios para seguir a voz do (outro) dono.
O que é que isto tem de purismo, linguístico ou outro? Nada. Apenas uma enorme falta de paciência para com estes ademanes. Tão generalizados. No linguajar inglês e nos outros.
jpt
Acabado de publicar, lançado hoje mesmo, este novo livro da colecção "Contos e Histórias de Moçambique", uma série infanto-juvenil que é uma iniciativa da Escola Portuguesa de Moçambique - Centro de Ensino de Língua Portuguesa. É o "A Viagem", uma adaptação de um conto moçambicano (recolhido por Junod, e muito saudavelmente apresentado no final do livro). As belas ilustrações são um produto colectivo, com base em trabalhos originais do artesão Tomás Muchanga, editados por Luís Cardoso (um resultado muito bem conseguido). O texto é de Tatiana Pinto, no que é já o seu segundo livro (a Tatiana é muito querida nesta família, o que nos incrementa o desvelo com que acompanhamos esta sua via literária). O tema é a afirmação de género (entenda-se, a igualdade de estatutos e direitos), mas abordada com um carinho nada invectivador, uma sedução literária a fruir, uma atitude intelectual a partilhar.
Um livro bonito, a usar e a ofertar. Gostámos muito.
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Uma nota, completamente lateral ao livro e aos autores, ortográfica que é. E antipática:
[eu tinha refeito o texto e retirado esta nota, deixando-a para um texto autónomo sobre a matéria. Acontece que este postal já estava comentado, referindo-a. Assim opto por voltar à "primeira forma"]
A EPM-CELP é uma instituição do estado português que nasceu como de "cooperação" no ensino (ainda que de facto seja algo diverso). Como tal faz-me alguma confusão que edite, em Moçambique, e para Moçambique (e, inclusivamente, para distribuição "gratuita nas escolas públicas e centros infantis de poucos recursos" no país), uma obra de escritora e artistas moçambicanos numa grafia que não é a nacional. Não só, nem fundamentalmente, por aquilo que tantos vão dizendo, isso de que a adopção do acordo ortográfico no contexto português assenta numa ilegalidade. Mas porque - e apesar de haver os tristes antecedentes locais, muito tristes acho, tão tristes que nem os adjectivo, da Ndjira (uma sucursal da Leya/Caminho, a olhar para aqui como se fosse Lisboa) e da própria Marimbique (a dizer-me que a olhar o futuro inevitável, e eu a não concordar) -, não me parece muito curial que o estado português (através da sua escola) edite aqui (repito, edite aqui) e dissemine - gratuitamente - a grafia que não está acordada no país. É uma espécie de (pouco) subtil imposição, um fait accompli desrespeitador da soberania (gráfica) local. Entenda-se, uma coisa é ensinar dentro de portas da Escola Portuguesa (onde a adopção é criticável, mas compreensível dada a pressão política), outra é publicar para distribuir fora de portas - sendo que, ainda por cima, nem em Portugal é obrigatória a utilização da "nova" grafia.
Ou seja, é uma questão cultural mas também uma questão política.
Estou a ser antipático? Poluindo a nota sobre a obra da amiga, cutucando a equipa editorial, gente amiga, resmungando com a EPM, cheia de gente amiga? Talvez. Mas é a minha forma de ser "ativista" (sic) face a uma "colecção" (sic). Para bons entendedores duas citações chegarão. Não é uma gralha (à escolha, qual delas o poderá ser). É apenas o confusionismo. O confusionismo gráfico que reina entre os colaboracionistas com o obscurantismo. Lusófono. Perdão, luso-tropical. Ele próprio confusionista. Ontologicamente confusionista.
jpt
Como já referimos o "grupo ma-schamba" no facebook cresceu bastante e tem acolhido alguns longos e interessantes debates a propósito dos postais do blog - e às vezes cheios do bom humor que vem faltando deste lado do blog.
Agora, no debate sobre "O Acordo Ortográfico (que antecedeu este "Ainda o Acordo Ortográfico), Francisco Belard deixou um comentário que quero realçar. Por isso o transcrevo:
Quanto ao princípio de não uniformização (subentenda-se forçada) entre formas de pronunciar e de escrever, concordo com o Manoel Carlos Pinheiro. Mas não tanto nos exemplos que dá. Tranquilo e ideia pronunciam-se em regra da mesma forma nos nossos dois países (tendo ou não acentos gráficos). Não dizemos o 'ei' de ideia ou de boleia da mesma maneira que o dizemos em epopeia, feia, leia, meia, etc. Claro que se passássemos a escrever Antônio dificilmente o leríamos como o António que usamos. Luandino nasceu em Portugal, e se a sua escrita foi voluntariamente angolana, nas duas ocasiões em que o ouvi não notei na sua fala diferenças em relação ao português de Portugal; até as noto maiores entre regiões deste pequeno país). Também não noto no falar de Mia Couto diferenças mais relevantes do que as existentes dentro do próprio português europeu (compare-se o de algumas ilhas açorianas com o do Alentejo, ou ambos com o do Porto, etc.). A escrita, essa sim, no Mia é não só moçambicana, por ele em parte construída, como muito pessoal, e ele luta por isso, mas aí estamos a falar mais de sintaxe e de léxico, não de pronúncia. Além disso, o «acordo» uniformiza pouco (e mal) e estabelece diferenças onde não existiam; os brasileiros e nós temos escrito recepção, ruptura e outros vocábulos da mesma maneira, só agora querem que as escrevamos (nós portugueses e também angolanos e moçambicanos) diferentemente. É uma pseudo-uniformização, sem base linguística séria e sem interesse prático, cultural ou económico. Para todos, um abuso de poder por parte de algumas figuras de duas academias patrocinadas por dois Estados. Em vez de uniformização (que não me parece nada desejável), o acordo quer impor (como o Manoel observou lucidamente) «tantas e desnecessárias alterações» que não pode «correr bem», digo eu, e não pode «dar certo», como se dirá sobretudo no Brasil. Se ao menos os artífices desse negócio obscuro garantissem que essa era a via para o maior conhecimento dos autores e das culturas dos dois lados do Atlântico, poderíamos parar um minuto para saber como e em quê. Mas nem isso; estão pensando em reais, dólares, euros, não em autêntico intercâmbio cultural, que assenta em conhecimento do outro país e na circulação de livros ou de filmes ou de músicas da comunidade que se exprime em português e noutros idiomas, ainda não ou já mutuamente ininteligíveis. Sabemos que não é por autoritarismos, vindos de novos ou velhos príncipes, que nos reaproximaremos. Será por evolução natural e popular, pela influência dos mestres, pela leitura dos vossos e nossos clássicos e modernos, será mesmo pelos vossos e nossos músicos e cantores de várias épocas, lugares, regiões e tradições que estas comunidades se reconhecerão, articularão e se expandirão, mas nunca em atitude imperial de quem tudo sabe, determina, impera e dita. Isso passou, agora temos democracias, agora temos cientistas, que têm distintas especialidades na Linguística e por serem sérios e competentes não vão concordar logo com tudo o que outro disse. Mas também não vão subordinar-se nem à ignorância ou falta de estudo dos problemas, nem a interesses obscuros ou mal esclarecidos de alguns sectores das nossas sociedades, nem à prepotência de ministros ou deputados que se recusaram a ouvir técnicos e cientistas, e obviamente não procuraram saber quais as vantagens que os povos reconheceriam em reformas que não fossem falsas, tolas, nem feitas à pressa. Escrevi de mais, mas tentei reflectir com os que antes escreveram. Um pseudo-acordo, com defeitos e erros científicos, vai complicar tudo e só «simplificará » no sentido precário e ilusório em que palavras ou construções que eram erradas serão «benzidas » como correctas. O português, na sua unidade essencial e nas suas intangíveis diversidades, nada ganhará com essa espécie de «acordos» entre dois ou três «craques» de duas «potências» que ignoraram os restantes países interessados no uso oficial e escolar, cultural e internacional, desta língua comum.
jpt
Aqui lembrei que é falso afirmar que não há sanções ortográficas, que reina a liberdade ortográfica. Não é só a documentação oficial e o mundo escolar. É no dia-a-dia, a desvalorização daquele que falha. É secular a hierarquia social expressar-se no apuro ortográfico, de tendencialmente se conceberem homólogas a "pureza" de casta e a da escrita. Na actualidade também tal se encontra constantemente. Quem lê blogs nota, repetidamente, polémicas polvilhadas com a desvalorização ortográfica: "V. escreveu mal X, portanto as suas opiniões são miseráveis". É um argumento imbecil (e nada cristão, aquela coisa de "atirar a primeira pedra ...") mas é constante. É certo que o "capital ortográfico" não está desligado de outras dimensões, e isso vê-se também no mundo dos blogs, mais nas catacumbas dos comentários, pois é muito comum que aí os anónimos irados sejam useiros e vezeiros na trapalhada ortográfica, quantas vezes pungente. Quem quiser ler isso sociologicamente que o faça.
Muito me irrita a redução do argumento alheio por causa de uma tropelia ortográfica cometida. Já por aqui o disse (e logo aparecem os "inteligentes" a afirmar que estou a defender os erros). É um arrivismo, nada mais do que isso. Mas existe e funciona. Pois muito boa gente embatuca e gagueja após ter cometido uma pequena burrada qualquer, como se os antepassados lhes caíssem na lama por tal. Ou, pior ainda, como se os antepassados lhes viessem da lama, que é a tal coisa das hierarquias sociais mostradas via uso do abecedário.
Vem isto a propósito de uma recente troca de opiniões num blog muito-conhecido, ocorrida entre bloguistas que discutiam exactamente o acordo ortográfico. Aconteceu que um ali exo-bloguista, veterano (e sportinguista), comentou a defender o acordo. E escreveu a palavra "dignatário". Foi logo reduzido a um limbo semi-mineral por uma atroz oponente do acordo, ali residente. Aquilo chamou-me a atenção, mais do que o habitual, pois "dignitário" é uma palavra que me custa, troca-me a língua. Algumas vezes a escrevi mal mas, pior (porque não se emenda), já muitas vezes a disse mal, foge-me o pé para o "dignatário". É claro que é erro, coisa básica da etimologia, mas da próxima vez já sei que o farei.
Naquela caixa de comentários fiquei (apesar dele defender o acordo) do lado do meu confrade (sportinguista). Pois "raios partam" as professoras primárias do tempo das palmatoadas, muito ciosas ...
Hoje ao ler a tradução portuguesa de livro russo de XIX (eu não sei russo, não posso avaliar a tradução, mas o texto está muito legível e sem adornos) feita por um tradutor muito conhecido deparei com uma "dignatário". Sorri. Fui confirmar nos dicionários electrónicos. Num apanho já a definição (vinda da empiria, ou seja, da língua) "Forma não recomendável de dignitário". Erro comum, em processo de ascensão. Ou seja, não estamos sós, neste nosso troca-línguas.
Moral da história: isto do "dignitário" mostra que é indigna a refutação por via ortográfica. Fraca forma de afirmar hierarquias sociais. Arrivista (ou seja, de "recém-chegados", faço-me entender?).
jpt
Poderia ser engraçado mas é apenas sintomático da pobreza intelectual que reina na esquerda geracional portuguesa. Há muita gente que pensa que concordar com o Acordo Ortográfico é sinónimo de ser "de esquerda", naquele velho sentido de progressista, multiculturalista ou interculturalista, moderna, "do mundo" - nesses cafés e bares de hoje em dia que é o Facebook farto-me de ver gente, até linguistas meus conhecidos, todos convictos disso. A idade não lhes tem feito bem. Nada mesmo.
Um dos exemplos desta pobreza intelectual é Rui Tavares, antigo deputado do Bloco de Esquerda muito provavelmente futuro deputado socialista. Tavares é um caso particular na política portuguesa, porventura o deputado politicamente mais repugnante da história da III República (ou talvez meu exagero, Daniel Campelo teve piores efeitos ...) com o seu populismo anti-parlamentar de distribuição de parcela do ordenado - a esquerda franciscana e anti-parlamentar adora esse vil eco do anti-política anti-democrático mais básico, da invectiva contra os "eles" políticos que muito ganham. Depois é um aldrabão, historiador deputado assina manifestos internacionais anunciando que em Portugal habita o "primeiro povo que abandonou a pena de morte" - a esquerda adora este sucedâneo dos crentes no milagre de Ourique. Com estas tralhas (e o seu obamismo) Tavares tem futuro, e entretanto vai recebendo para escrever (porventura também distribui esse dinheiro) inanidades no "Público". Agora publicou esta sobre o Acordo Ortográfico - não há muito mais publicado na imprensa portuguesa defendendo a tralha acordista o que demonstra bem do sentir generalizado face a essa "pesada herança". Mais do que traço do seu autor é interessante ver que os defensores do acordo se abrigam no sarcasmo, pobre coito para algo que teve o seu tempo e que o foi perdendo.
"A voz das consoantes sem voz"
Salvé, Vasco Graça Moura, insigne auctor que desafiaste o dictame do governo e reintroduziste a escripta antiga no teu Feudo Cultural de Belém! Povo português, imitai o exemplo deste Aristides Sousa Mendes das consoantes mudas, como lhe chamou o escriptor e traductor Jorge Palinhos. Salvai as sanctas letrinhas ameaçadas pela sanha accordatária.
Mas ficai alerta, portugueses! As consoantes mudas são muitas mais do que julgais! O “c” de actual e o “p” de óptimo são apenas os últimos sobreviventes de um extermínio secular que lhes moveram os medonhos modernizadores da escripta. Há que salvar agora estas pobres victimas, até à septima geração.
Acolhei-as pois a todas, portugueses, recolhei-as agora em vossos escriptos como a inocentes ameaçados por Herodes. Se há uma consoante muda a salvar em factura, há outra em sanctidade, e esta ainda mais sancta do que aquela. O Espírito Sancto tem uma. Maria Magdalena tem outra. E Jesus Cristo? Ora! O fructo do vosso ventre, Maria, já tinha consoante muda mesmo antes de nascer. Não sabíeis? Assim Ele se conformou, e nós nos inconformaremos.
Há quem diga que o accordo ortográfico é um tractado internacional que foi já transcripto para as nossas directivas internas. Dizem que o assumpto morreu.
Balelas! Nada nem ninguém nos obrigará a cumprir obrigações internacionais. Vasco Graça Moura mostra o caminho, e eu — peccador que fui — vejo agora a luz. Depois da summa missão de salvar as consoantes mudas que resistem, e ressusciptar as que foram suppliciadas no passado, há que supplementar este grande desígnio com outras acções.
O conductor da ambulância que leva doentes oncológicos a serem tractados, pode desobedecer ao corte de subsídios de transporte fazendo o serviço gratuitamente O quê, a austeridade, a troika? Balelas! O memorando não passa de um simples accordo internacional que o governo quer implementar. Se Graça Moura faz lei, de graça poderão também entrar os passageiros nos transportes públicos. E se o seu chefe for um republicano e patriota daqueles que não se contenta com andar com a bandeira num pin da lapela? Pois decrete que o fim dos feriados não vale lá na repartição. E o paginador do Diário da República pode rasurar as nomeações partidárias e alguns zeros dos salários de administrador, para dar espaço às consoantes mudas. O governo entenderá.
Néscio António Mega Ferreira que, apesar da sua gestão impeccável, foi demitido. Nada lhe succederia se, em vez de padecer de “falta de sintonia política”, tivesse antes violado um accordo internacional que o governo decidira fazer entrar em vigor meras semanas antes.
Insensato Pedro Rosa Mendes, que foi censurado por contrariar o governo de Angola. Se contrariasse a CPLP inteira, ainda tinha crónica, e applauso da imprensa!
Longe vai Diogo Infante, demitido por não ter dinheiro para fazer teatro no Teatro Nacional. Mas João Motta, que o substituiu, pode agora imitar a Nova Estrela de Belém. Mande as restricções às malvas, gaste o que tiver a gastar, desde que mande os actores pronunciar as consoantes que agora já não são mudas mas mártires, e que nunca mais se calarão, e que orgulhosamente transformaremos em oclusivas, fricativas ou até explosivas, se nos der na bolha, numa aKção aFFirmativa e peremPtória!
Está assim lançado um movimento que fará os gregos corar de vergonha e os alemães tremerem das pernas. Vamos dar voz às consoantes sem voz! E depois, quem sabe, aos portugueses sem voz, sem trabalho e sem futuro.
Alguns textos noutro sentido têm sido produzidos. No blog ILC - Contra o Acordo Ortográfico vão sendo preciosamente recolectados. Nesse eixo há argumentos com os quais concordo outros nem tanto. Mas há uma diferença fundamental diante dos acordistas, neles se encontra uma tentativa de entender ou perspectivar os efeitos que o acordo terá na praxis da língua. Muito para além da arrogância altaneira e sarcástica que grassa nos "acordistas".
Um bom exemplo de reflexão é o texto de Manuel Villaverde Cabral, publicado no Público, que responde directamente à atoarda de Tavares e que reproduzo do ILC - Contra o Acordo Ortográfico
Consoantes Mudas ou Colunistas Surdos?
O colunista Rui Tavares decidiu adoptar, na sua crónica de 6 de Fevereiro, um tom pretensamente jocoso para criticar a decisão do novo presidente do CCB, Vasco Graça Moura, de não aplicar o chamado “acordo ortográfico” imposto aos portugueses, apesar da forte mobilização que se registou no país contra ele e do facto de dois dos maiores países de língua ofi cial portuguesa, Angola e Moçambique, não terem ratificado o respectivo tratado. Fez mal. Quis ser engraçado, mas não teve piada.
O assunto é demasiado sério e não se resolve com ofensas avulsas contra uma pessoa que há mais de uma década se dedicou a rebater os escassos argumentos esgrimidos por alguns raros dicionaristas agindo por conta de interesses políticos mal compreendidos. Tavares apresenta-se como arauto do alinhamento da ortografi a do Português europeu pela do Português do Brasil, mas não adianta um único argumento a favor do “acordo”.
Mistura alhos com bugalhos e agita todos os episódios da crónica política recente para “gozar” com as justificadas dúvidas de Graça Moura e dezenas de milhares de outros portugueses (e alguns brasileiros) que conseguiram bloquear a primeira tentativa de nos impingir o dito “acordo”. Porém, toda a sua jocosa pirotecnia não acrescenta um átomo às débeis falácias dos professores Houaiss e Casteleiro, quando entenderam “fazer política com a língua” em vez de “fazerem verdadeira política da língua”, como acontece igualmente com Tavares.
Ora, o “acordo” não é mau para um país abstracto chamado Portugal e para os “conservadores” de quem o colunista se pretende rir. Nem sequer é apenas mau para a ortografi a e a fonética do Português europeu; é mau sobretudo para a já de si defi ciente aprendizagem do Português. Só para dar um exemplo, as consoantes mudas” que Tavares pretendeu ridicularizar logo no título da crónica não são tiques de bota-de-elástico. Têm funções fonéticas e etimológicas relevantes que só o esquecimento, para não dizer outra coisa, faz desprezar. Foneticamente, abrem as vogais que se lhe seguem e permitem distinguir, por exemplo, “recessão” de “recepção”, já que a tendência do Português europeu falado é, como se sabe, para o chamado “emudecimento” das próprias vogais não sinalizadas.
Além disso, etimologicamente as ditas consoantes “mudas” servem para identifi car étimos comuns, não só dentro do próprio Português, como por exemplo em “Egipto” e “egípcio”, sendo o “p” alegadamente mudo na primeira palavra e pronunciado na segunda; como também para identifi car étimos comuns noutras línguas europeias: “acção” e “activo”, por exemplo, pertencem a uma vasta família etimológica presente não só em línguas latinas como o Francês (“action”, “actif”) mas também no Inglês (“action”, “active”). Por outras palavras, a etimologia e a sua representação gráfica ajudam-nos a saber de onde vimos, se é que a história conta alguma coisa para quem se assina como historiador.
A cedência à ortografia brasileira talvez faça vender alguns dicionários mas será altamente prejudicial para a aprendizagem da língua pelas futuras gerações de Portugueses da Europa, que já não precisam de ser desajudados. As profundas alterações introduzidas pelo presente “acordo” na ortografi a portuguesa não são equivalentes à substituição do “ph” de “pharmácia” por “f ”, pois esta alteração não afectou a fonética da palavra, como a supressão do “c” mudo afectará a pronúncia dos compostos do étimo “afecto” se este “acordo” for por diante. Ignora Rui Tavares o que aconteceu ao fonema “güe” na palavra “bilingüe” quando o trema foi suprimido em Portugal (o Brasil não nos acompanhou e fez bem)?
O colunista devia saber que é muito feio tentar desvalorizar os argumentos alheios com piadas de mau gosto. Não foi à toa que a grande maioria dos linguístas portugueses e muitos brasileiros não cedeu a mal compreendidas motivações políticas na defesa da ortografi a, da fonética e da etimologia do Português em que nos temos entendido, até agora, neste pequeno rectângulo do Sudoeste europeu. Tanto mais que, como é bem sabido, o Português falado e escrito no Brasil não vai parar a sua fortíssima dinâmica própria lá porque a classe política portuguesa assinou um “acordo” artificial que só prejudica a aprendizagem e o correcto domínio do Português de cá!
Manuel Villaverde Cabral
Muito recentemente li dois curiosos textos sobre o assunto. Curiosos pela sua origem, um macaense e outro angolano. Ainda que não lhes conheça o contexto autoral deixam a entender que a polémica em Portugal (onde a defesa do Acordo é bastante deficitária e em perda, veja-se o abandono da sua defesa pelo próximo secretário-geral do PS Francisco Assis) está a ter efeitos benéficos noutros locais onde o português é língua oficial. E demonstram, no caso do texto de Macau de modo até doloroso, como o próprio Estado português está dissociado deste acordo, na prática uma mera e cansativa sobrevivência de tempos que já passaram.
Aqui os transcrevo. O editorial do "Jornal de Angola" de 8 de Fevereiro de 2012, ao qual cheguei via Delito de Opinião:
"Os ministros da CPLP estiveram reunidos em Lisboa, na nova sede da organização, e em cima da mesa esteve de novo a questão do Acordo Ortográfico que Angola e Moçambique ainda não ratificaram. Peritos dos Estados membros vão continuar a discussão do tema na próxima reunião de Luanda. A Língua Portuguesa é património de todos os povos que a falam e neste ponto estamos todos de acordo. É pertença de angolanos, portugueses, macaenses, goeses ou brasileiros. E nenhum país tem mais direitos ou prerrogativas só porque possui mais falantes ou uma indústria editorial mais pujante.
Uma velha tipografia manual em Goa pode ser tão preciosa para a Língua Portuguesa como a mais importante empresa editorial do Brasil, de Portugal ou de Angola. O importante é que todos respeitem as diferenças e que ninguém ouse impor regras só porque o difícil comércio das palavras assim o exige. Há coisas na vida que não podem ser submetidas aos negócios, por mais respeitáveis que sejam, ou às “leis do mercado”. Os afectos não são transaccionáveis. E a língua que veicula esses afectos, muito menos. Provavelmente foi por ter esta consciência que Fernando Pessoa confessou que a sua pátria era a Língua Portuguesa.
Pedro Paixão Franco, José de Fontes Pereira, Silvério Ferreira e outros intelectuais angolenses da última metade do Século XIX também juraram amor eterno à Língua Portuguesa e trataram-na em conformidade com esse sentimento nos seus textos. Os intelectuais que se seguiram, sobretudo os que lançaram o grito “Vamos Descobrir Angola”, deram-lhe uma roupagem belíssima, um ritmo singular, uma dimensão única. Eles promoveram a cultura angolana como ninguém. E o veículo utilizado foi o português. Queremos continuar esse percurso e desejamos que os outros falantes da Língua Portuguesa respeitem as nossas especificidades. Escrevemos à nossa maneira, falamos com o nosso sotaque, desintegramos as regras à medida das nossas vivências, introduzimos no discurso as palavras que bebemos no leite das nossas Línguas Nacionais. Sabemos que somos falantes de uma língua que tem o Latim como matriz. Mas mesmo na origem existiu a via erudita e a via popular. Do “português tabeliónico” aos nossos dias, milhões de seres humanos moldaram a língua em África, na Ásia, nas Américas. Intelectuais de todas as épocas cuidaram dela com o mesmo desvelo que se tratam as preciosidades.
Queremos a Língua Portuguesa que brota da gramática e da sua matriz latina. Os jornalistas da Imprensa conhecem melhor do que ninguém esta realidade: quem fala, não pensa na gramática nem quer saber de regras ou de matrizes. Quem fala quer ser compreendido. Por isso, quando fazemos uma entrevista, por razões éticas mas também técnicas, somos obrigados a fazer a conversão, o câmbio, da linguagem coloquial para a linguagem jornalística escrita. É certo que muitos se esquecem deste aspecto, mas fazem mal. Numa entrevista até é preciso levar aos destinatários particularidades da linguagem gestual do entrevistado.
Ninguém mais do que os jornalistas gostava que a Língua Portuguesa não tivesse acentos ou consoantes mudas. O nosso trabalho ficava muito facilitado se pudéssemos construir a mensagem informativa com base no português falado ou pronunciado. Mas se alguma vez isso acontecer, estamos a destruir essa preciosidade que herdámos inteira e sem mácula. Nestas coisas não pode haver facilidades e muito menos negócios. E também não podemos demagogicamente descer ao nível dos que não dominam correctamente o português.
Neste aspecto, como em tudo na vida, os que sabem mais têm o dever sagrado de passar a sua sabedoria para os que sabem menos. Nunca descer ao seu nível. Porque é batota! Na verdade nunca estarão a esse nível e vão sempre aproveitar-se social e economicamente por saberem mais. O Prémio Nobel da Literatura, Dário Fo, tem um texto fabuloso sobre este tema e que representou com a sua trupe em fábricas, escolas, ruas e praças. O que ele defende é muito simples: o patrão é patrão porque sabe mais palavras do que o operário!
Os falantes da Língua Portuguesa que sabem menos, têm de ser ajudados a saber mais. E quando souberem o suficiente vão escrever correctamente em português. Falar é outra coisa. O português falado em Angola tem características específicas e varia de província para província. Tem uma beleza única e uma riqueza inestimável para os angolanos mas também para todos os falantes. Tal como o português que é falado no Alentejo, em Salvador da Baía ou em Inhambane tem características únicas. Todos devemos preservar essas diferenças e dá-las a conhecer no espaço da CPLP. A escrita é “contaminada” pela linguagem coloquial, mas as regras gramaticais, não. Se o étimo latino impõe uma grafia, não é aceitável que através de um qualquer acordo ela seja simplesmente ignorada. Nada o justifica. Se queremos que o português seja uma língua de trabalho na ONU, devemos, antes do mais, respeitar a sua matriz e não pô-la a reboque do difícil comércio das palavras."
E o editorial do jornal "Hoje Macau", assinado por Carlos Morais José, já de 30 de Setembro de 2011, algo ácido mas sem ter perdido actualidade (também via Delito de Opinião):
"Os responsáveis pela implementação do malfadado Acordo Ortográfico não sabem escrever. Pelos menos a nós não escrevem. Oficialmente, este jornal não faz a mínima ideia de que está a ser implementado um novo Acordo Ortográfico em Portugal, cuja ambição é atingir toda a escrita em Português no mundo. Apesar de sermos, juntamente com os outros jornais, os grandes garantes da língua e a utilizemos aqui na China diariamente e para o público, devem entender as sumidades que não nos vale a pena dar cavaco. E ainda bem: fiquem com eles: o Cavaco e o Acordo. Pois é: não me lembro de nos ter sido endereçada uma carta, uma comunicação oficial, um convite, uma mínima consideração, da parte dos tais promotores do documento.
Este facto – a má educação académica – não é novo. O que se passa é que os génios que elaboraram a asneira devem julgar-se protegidos nas suas torres de euros e marfim, demasiado cheios de si para dar importância aos verdadeiros operários da língua, aos que a mantêm viva todos os dias, muitas vezes contra tudo, contra todos e apesar de vocês.
O Acordo Ortográfico e as alterações nas denominações gramaticais devem ter sido causados pelo excesso de divórcios entre essa gente. Nada para fazer, tédio redondo, narcisismo destroçado, logo: vamos lá destruir a nossa língua, quiçá ficar na História (risos alarves).
Por outro lado, as mesmas bestas também, ao que sei, nada comunicaram ao governo de Macau, o que é profundamente estúpido porque uma das línguas oficiais da RAEM é o Português. Claro que os animais não compreendem a importância deste facto. Normal. Mas já conhecem Macau para cá vir conferenciar (leia-se passear) sobre aqueles temas que nem desencantados na cabeça dos tinhosos. Não vou fulanizar porque o que de facto dá vontade é de os saltear em óleo Fula. Não pode um honesto emigrante sair do seu país descansado que aparecem uns energúmenos a modificar-lhe a escrita. E agora a nomenclatura da gramática.
Ora este desprezo a que Macau foi votado é muito bom. Porque significa que continuaremos a escrever em bom português, ao contrário da ridicularia que por aí vai, a maior parte das vezes sem pés para andar e muito pouca cabeça.
Que o Acordo seja aplicado em Portugal. Afinal, o país já está de tal maneira de rastos que, mais disparate menos disparate, não há-de ter relevante importância.
Nós por cá todos bem."
Com toda esta polémica muito gostaria que também em Moçambique se olhasse este Acordo, aqui ainda não ratificado nem tampouco verdadeiramente analisado, de modo crítico. E que esse olhar crítico fosse não só "linguista", essa pobre tecnocracia que é das poucas lianas que impede o actual mero rastejar acordista.
Para mim, e olhando para a mediocridade radical que encima este postal, só me ocorre uma citação. Que não é sobre linguística. Mas que poderia ter sido escrita para desenhar a paupérrima "esquerda" chic (e acordista) do meu país. Festiva, mais do que tudo. Também antidemocrática - e talvez por isso tão adversa a incluir neste assunto os efeitos práticos da legislação ortográfica. Uma esquerda inculta e nisso incapaz de ver o mundo, o seu próprio país e de nele perspectivar futuros - abertos, multifacetados. Heterodoxos. Heterográficos. Um lixo histórico, apenas arrogante:
"Envisager ou non les liaisons entre les textes littéraires et l'impérialisme c'est donc en fait prendre parti - soit'étudier le lien pour le critiquer et penser des alternatives, soit ne pas l'étudier afin qu'il se perpétue sans examen et très problablement sans changement" (E. Said, "Culture et Impérialisme, Fayard, 121). Leia-se, porque não?, "acordos ortográficos" onde está "textos literários".
jpt
Desassombrada a atitude de Vasco Graça Moura. A desobedecer. Um exercício de cidadania. Aprecio e concordo em parte com este texto de Laura Ramos que, concordando com Graça Moura na recusa ao (Des)Acordo, questiona a legitimidade desta sua decisão de proibir a adesão ao acordo no Centro Cultural de Belém. Mas talvez se possa ir mais além. Há momentos em que é preciso ir mais além. Desobediência de cidadania não apenas como acto individual mas como acto público, político, abarcando as múltiplas dimensões do cidadão. Arriscando. É o caso. A saudar. Ainda para mais entre gente de tão poucos riscos.
Entretanto no facebook acaba de surgir um grupo de apoio a Vasco Graça Moura mas também intentando ainda os procedimentos legais (de cidadania) para obstar ao Acordo. A seguir.
jpt
"(Des)Acordo Ortográfico separa os "maquisards" dos "vende-pátrias"?" é o título de um palavroso artigo no Diário de Notícias de hoje, escrito por Oscar Mascarenhas e dedicado ao Acordo Ortográfico, dele não desgostando e minorando as críticas e os motivos das críticas (tal como reduzindo-as à preguiça dos escribas, por essa nada atreitos à mudança de hábitos ... ortográficos). No meio daquele caudal de palavras detecto que o autor afirma que este acordo resulta num estado ortográfico onde se vão "escrevendo ... as palavras como são pronunciadas". Como tal só posso concluir que há uma pronúncia de português. Universal.
Não sei quem é Óscar Mascarenhas, o autor deste total dislate em texto muito convicto de si mesmo. Apenas leio que é o provedor dos leitores do Diário de Notícias. Pobres leitores, providos de defensores com esta ... pronúncia. E tamanha preguiça ... intelectual.
jpt
Um belo artigo de João Pereira Coutinho publicado na "Folha de São Paulo" que transcrevo, tendo-o encontrado no Delito de Opinião:
"Começa a ser penoso para mim ler a imprensa portuguesa. Não falo da qualidade dos textos. Falo da ortografia deles. Que português é esse? Quem tomou de assalto a língua portuguesa (de Portugal) e a transformou numa versão abastardada da língua portuguesa (do Brasil)?
A sensação que tenho é que estive em coma profundo durante meses, ou anos. E, quando acordei, habitava já um planeta novo, onde as regras ortográficas que aprendi na escola foram destroçadas por vândalos extra-terrestres que decidiram unilateralmente como devem escrever os portugueses. Eis o Acordo Ortográfico, plenamente em vigor. Não aderi a ele: nesta Folha, entendo que a ortografia deve obedecer aos critérios do Brasil. Sou um convidado da casa e nenhum convidado começa a dar ordens aos seus anfitriões sobre o lugar das pratas e a moldura dos quadros. Questão de educação.
Em Portugal é outra história. E não deixa de ser hilariante a quantidade de articulistas que, no final dos seus textos, fazem uma declaração de princípios: “Por decisão do autor, o texto está escrito de acordo com a antiga ortografia”. A esquizofrenia é total, e os jornais são hoje mantas de retalhos. Há notícias, entrevistas ou reportagens escritas de acordo com as novas regras. As crônicas e os textos de opinião, na sua maioria, seguem as regras antigas. E depois existem zonas cinzentas, onde já ninguém sabe como escrever e mistura tudo: a nova ortografia com a velha e até, em certos casos, uma ortografia imaginária.
A intenção dos pais do Acordo Ortográfico era unificar a língua. Resultado: é o desacordo total com todo mundo a disparar para todos os lados. Como foi isso possível?
Foi possível por uma mistura de arrogância e analfabetismo. O Acordo Ortográfico começa como um típico produto da mentalidade racionalista, que sempre acreditou no poder de um decreto para alterar uma experiência histórica particular. Acontece que a língua não se muda por decreto; ela é a decorrência de uma evolução cultural que confere aos seus falantes uma identidade própria e, mais importante, reconhecível para terceiros.
Respeito a grafia brasileira e a forma como o Brasil apagou as consoantes mudas de certas palavras (“ação”, “ótimo” etc.). E respeito porque gosto de as ler assim: quando encontro essas palavras, sinto o prazer cosmopolita de saber que a língua portuguesa navegou pelo Atlântico até chegar ao outro lado do mundo, onde vestiu bermuda e se apaixonou pela garota de Ipanema. Não respeito quem me obriga a apagar essas consoantes porque acredita que a ortografia deve ser uma mera transcrição fonética. Isso não é apenas teoricamente discutível; é, sobretudo, uma aberração prática.
Tal como escrevi várias vezes, citando o poeta português Vasco Graça Moura, que tem estudado atentamente o problema, as consoantes mudas, para os portugueses, são uma pegada etimológica importante. Mas elas transportam também informação fonética, abrindo as vogais que as antecedem. O “c” de “acção” e o “p” de “óptimo” sinalizam uma correta pronúncia. A unidade da língua não se faz por imposição de acordos ortográficos; faz-se, como muito bem perceberam os hispânicos e os anglo-saxônicos, pela partilha da sua diversidade. E a melhor forma de partilhar uma língua passa pela sua literatura. Não conheço nenhum brasileiro alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Fernando Pessoa na ortografia portuguesa. E também não conheço nenhum português alfabetizado que sinta “desconforto” ao ler Nelson Rodrigues na ortografia brasileira. Infelizmente, conheço vários brasileiros e vários portugueses alfabetizados que sentem “desconforto” por não poderem comprar, em São Paulo ou em Lisboa, as edições correntes da literatura dos dois países a preços civilizados.
Aliás, se dúvidas houvesse sobre a falta de inteligência estratégica que persiste dos dois lados do Atlântico, onde não existe um mercado livreiro comum, bastaria citar o encerramento anunciado da livraria Camões, no Rio, que durante anos vendeu livros portugueses a leitores brasileiros.
De que servem acordos ortográficos delirantes e autoritários quando a língua naufraga sempre no meio do oceano?"
No Expresso também Pedro Mexia publica um bom texto sobre o assunto (que encontro no Blog à Portuguesa):
Antiga Ortografia
Fulano escreve “de acordo com a antiga ortografia”, diz o aviso que acompanha estas crónicas. Eu agradeço que o “Expresso” me permita a objecção de consciência face ao chamado Acordo Ortográfico, e percebo que indique quem segue ou não as novas regras, para evitar confusões; mas suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém que pretende colar aos dissidentes o vocábulo “antiga”, como se nós escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto “antiga”: antiquada, decrépita, morta.
Eu não sou pela “antiga ortografia” por caturrice. Estou contra o “acordo” porque me parece uma decisão meramente política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os legisladores impuseram aos falantes uma “ortografia unificada”, que, dizem, garante a “expansão da língua” e o seu “prestígio internacional”. Mas a expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo, não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional, lamento informar que foi o sucesso económico, e não a “língua de Camões”, que transformou o Brasil numa potência.
Não é este “acordo” que vai trazer expansão e prestígio ao português. Contenta uns “acadêmicos espertos e parlamentares obtusos”, como escreveu um colunista brasileiro, e alguns editores, que têm bom dinheiro a ganhar com esta negociata. Mas é difícil imaginar que alguém acredite que vem aí uma “unificação da língua” só porque se legislou uma “unificação da grafia”. Um brasileiro continuará a falar uma língua muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico, de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do Acordo debaixo do braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar “oi?”, pois não percebeu metade. E isso não tem problema algum, a “lusofonia” não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português europeu, africano, americano e asiático. E ninguém é dono da língua: nem os brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo, muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram “bué” e “guterrismo”.
É significativo que o próprio “acordo” reconheça o fracasso do projecto de “unificação a língua”. Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África, para estes iluministas, é paisagem]. Pior ainda, introduzem uma “grafia facultativa” que estabelece como termos lícitos tanto “electrónica” como “eletrónica”, “electrônica” ou “eletrónica”. O linguista António Emiliano deu-se ao trabalho de enumerar em livro os erros, contradições, imprecisões e dislates desta lei iníqua. Leiam-no. E não digam que ninguém avisou.
A minha recusa deste “acordo” não é casuísta nem temperamental. Não se trata apenas de não gostar de ver os espectadores transformados em bandarilheiros “espetadores”; de não perceber como é que os habitantes do “Egito” não são “egícios”; de ficar estupefacto com o “cor-de-rosa” com hífen e o “cor de laranja” sem hífen; de prever os imparáveis espalhanços de um “pára” do verbo “parar” que perde o acento e talvez o assento. É isso mas é mais que isso: eu discordo veementemente do critério fundamental do “acordo”: a primazia da fonética sobre a ortografia.
É verdade que todos falamos antes de sabermos ler e escrever, mas quando aprendemos essas competências sofisticadas interiorizamos uma língua diferente da falada, que nalguns casos nem tem exacta correspondência fonética mas que se liga a uma memória histórica e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica das palavras, uma forma que memorizamos e que nos acompanha a vida toda, de modo que nunca mais lemos letra a letra, mas reconhecemos de imediato uma grafia aprendida há muito, “antiga”, sim, muito antiga. A ortografia não é uma transcrição fonética, nem podia ser, dadas as variantes do português falado. Ou nas pronúncias regionais. Como escreveu Emiliano, não vamos criar uma “ortografia do Alto Minho” só porque a pronúncia de Caminha é diferente da pronúncia de Cascais. Ou de Curitiba.
E não me digam que são pouquíssimas as palavras alteradas: procure quantas vezes neste jornal aparece ação, ator, atual, coleção, coletivo, diretor, fato, letivo, ótimo, e repare que são algumas das mais usadas. É por isso que o cavalo de Tróia das “consoantes mudas” deve ser denunciado. Em primeiro lugar porque não são mudas coisíssima nenhuma: abrem as vogais precedentes, e numa língua danada por fechar vogais. Depois, porque não são inúteis, ajudam a distinguir termos homógrafos e indicam a etimologia de palavras afins. Fazem sentido, ao contrário do “acordo”.
Dizem os acordistas que a nova ortografia “simplifica” e “facilita a aprendizagem”. Toda a gente sabe o que significa “facilitar a aprendizagem”, e os resultados que isso deu no ensino. E se a intenção é “simplificar”, que tal escrevermos todos em linguagem de telemóvel? Por mim, continuarei antigo.
E um outro artigo sobre o assunto, de Bagão Félix. O desconforto continua, a discordância também.
A língua, escrita ou falada, é a expressão viva da evolução social. Particularmente num mundo sem fronteiras, com novas formas de comunicação e de relação. O português – a 5ª língua nativa mais falada – não foge a essa regra.
Mas uma coisa é a absorção de modificações que se vão verificando, outra é a sua imposição por decreto. O Acordo Ortográfico é o produto não de uma evolução natural e impregnada na prática, não de uma necessidade de defesa e promoção linguísticas, mas tão-só a imposição de iluminados, que o Estado avalizou, menosprezando posições diferentes e ignorando a voz do povo soberano.
O Acordo é também uma expressão de submissão às maiorias populacionais. Neste caso, do Brasil. Esquece-se que uma língua se enriquece na diversidade e se empobrece na "unicidade" por forçada via legal. Claro que há sempre prosaicas justificações mercantis (interesses?) em sua defesa e há quem vá ganhar com tudo isto.
Imagina-se o Governo britânico a uniformizar a grafia de vocábulos escritos nos Estados Unidos ou Austrália (v.g. "realise"/"realize", "center"/"centre" ou "labour"/"labor")? Ou o castelhano a adaptar, por lei, a escrita de certos vocábulos na Argentina?
Pequeninos geograficamente, teimamos em ser pequeninos patrioticamente. Dizia sabiamente Fernando Pessoa: "A palavra escrita é um elemento cultural, a falada apenas social".
Adivinhem o que se quer dizer com "não me pelo pelo pelo de quem para para desistir"? Na rejeitada e antiga grafia escreve-se: "não me pélo pelo pêlo de quem pára para desistir " Já não nos chegavam os agravos à nossa língua nas tv e textos públicos, eis que os tornam agora obrigatórios. Os "supônhamos" e "houveram" de braço dado com os "suntuosos" e os "contrassensos".
Enfim, a lógica da batata. Ou da " (H)ortografia".
jpt
Uma bela entrevista de António Cabrita à revista brasileira "Pausa". Sobre ele próprio. Sobre poesia, poetas, cinema. A situação das áreas culturais em Moçambique e Portugal, etc. Tudo isto a propósito das suas frenéticas publicações (o Cabrita acaba de publicar três livros) em particular o romance "A Maldição de Ondina", publicado no Brasil.
Sublinhando esta recomendação para que se leia a entrevista aqui transcrevo a visão do António Cabrita sobre dois temas que têm sido recorrentes aqui no ma-schamba: a lusofonia e o acordo ortográfico.
Está muito bem o Cabrita.
O que você acha do acordo ortográfico e da chamada lusofonia.
O acordo não me ofende nem me arrefece. Como dizia o Deleuze há que gaguejar na língua para que a língua no seu próprio interior se torne bilingue, isto é, cito-o, o multilinguismo não é apenas a posse de vários sistemas mas antes de tudo a linha de fuga ou de variação que afecta cada sistema impedindo-o de ser homogéneo. Isto que sublinho é o que me importa no manejo de uma língua, é o que sempre foi feito por alguns e é o que continuará a ser feito, e isto não há acordo que o impeça. Agora, há o aspecto político da questão e aí é claro que o acordo existe para favorecer a indústria do livro brasileira, o resto são balelas.
Quanto à lusofonia manifesto reservas. Não sei como é no Brasil mas em Portugal fala-se em lusofonia como um efeito hipnótico que levaria logo a uma bacalhauzada entre os falantes de português. Para Moçambique é um termo controverso, associado ao neo-colonialismo. E de facto é preciso perguntar que sentido faz falar em «lusofonia» num país em que só oito por cento dos seus habitantes é que tem o português como língua mãe. Mesmo que o português seja a língua oficial, os códigos e as performances da língua aqui são distintas, verificando-se um crescendo de contaminações das línguas nativas e do inglês na textura do português, assim como a presença de deslizes semânticos que introduzem variações quer de significado, quer sintácticas, que tornam a sua tradução uma história de diferimento e não um rastro contínuo. Aparentemente falamos a mesma língua, mas os códigos e protocolos da língua e os valores dos seus significados são tão díspares que nos sentimos num perpétuo território estrangeiro, o qual está minado pelos equívocos e mal-entendidos com que a aparência de uma língua comum, transparente, tornou bélico o terreno. A lusofonia é uma cortina de fumo para que as embaixadas possam não falar entre si de coisas concretas, urgentes e necessárias. Com o álibi dessa suposta base identitária faz-se de conta que está tudo bem para não se investir em nenhum tipo de comprometimento sério.
É como Prémio Camões. Em 2001 fui ao Brasil, tinha acabado de lançar Inferno, que escrevi em parceria com a Maria Velho da Costa, a quem fora atribuído o prémio há 2 anos atrás. Fui a várias editoras brasileiras tentar vender esse e outros livros dela. Ninguém sabia quem ela era. O eco do Prémio Camões não tinha saído das embaixadas. É patético. Não entender a inocuidade disto é grave, desajustado e redutor. Por isso a lusofonia lembra-me a deselegância de estar a martirizar uma noiva, na véspera do casamento, falando-lhe obsessivamente do antigo namorado que ela faz tudo para esquecer.
O imaginário lusófono é como o sentimento da queda no Paraíso bíblico: há um misto de culpa, de rejeição e de tremenda atracção pela Eva. O aparente decoro da Eva não nos deve deixar impotentes, e convém voltar a fecundá-la, com a diferença de que agora pode ser ela a tomar as rédeas do jogo, tendo o papel activo na função. É preciso aceitar a troca das posições no leito para que a coisa volte a animar. Enquanto não se entender esta coisa primária, a lusofonia não passa da simulação das erecções de um anão ao espelho. O Eduardo Lourenço já disse tudo sobre esta matéria no seu devido tempo, mas como os políticos portugueses não têm mais nada a oferecer senão retórica agarram-se à miragem.
jpt
[Susana de Matos Viegas, Terra Calada. Os Tupinambá na Mata Atlântica do Sul da Bahia, Rio de Janeiro/Coimbra, Viveiros de Castro Editora & Edições Almedina, 2007]
Este livro é a versão revista da tese de doutoramento de Susana Matos Viegas, corolário de um longo trabalho de campo, ocorrido entre 1997 e 2005, assim até extravasando a conclusão dessa graduação, realizada na Universidade de Coimbra. Susana Matos Viegas é uma antropóloga portuguesa de primeiro plano, actualmente investigadora no Instituto de Ciências Sociais de Lisboa e foi presidente da Associação Portuguesa de Antropologia - friso esses posto e cargo para referir a sua centralidade na corporação profissional em Portugal.
Não vou aqui abordar o conteúdo do seu livro mas sim a sua forma. Para a sempre desejável publicação em livro da sua investigação de doutoramento, SMV encarou o público que teria como alvo privilegiado. Sendo um trabalho dedicado à questão índia, premente nas últimas décadas brasileiras, tornou-se óbvio que os interessados oscilariam fundamentalmente entre a pequena comunidade antropológica académica portuguesa e um contexto bem mais vasto brasileiro, desde uma academia mais alargada a um universo de agentes sociais (estatais ou ongs) ligados (ou meramente interessados) às negociações sociopolíticas relativas a esta temática. Essa duplicidade nota-se, inclusive, ao nível de uma publicação editada conjuntamente por duas editoras, uma portuguesa (a conimbricense Almedina) e uma brasileira.
Mas o fundamental é que tendo em atenção o público maioritário com que esta publicação intenta dialogar o texto foi "traduzido" para português (académico) do Brasil, um trabalho efectivamente realizado por um profissional que transpôs o português académico de Portugal, original na tese. No óbvio intuito de tornar mais manuseável, mais amável, mais atractivo, o seu objecto comunicacional para o seu público maioritário. O qual, como é óbvio, e até pelas suas características sociológicas, poderá ler o português (académico) de Portugal - pois aqui não se tratou de uma declaração de défice cognitivo alheio - mas está confortável noutro português, o (académico) do Brasil.
E com isto me fez lembrar o início dos anos 1980s (quando SMV e eu fomos colegas). Quando na universidade contactávamos com uma bibliografia inexistente em edição portuguesa. E amplamente traduzida no Brasil (em particular pela Zahar Editora, lembro). E nas nossas dificuldades em ler os sociólogos e antropólogos ali traduzidos. Dizíamos que as traduções eram más (e algumas com toda a certeza seriam) e preferíamos, sem snobice mas por economia de esforço, ler em inglês ou francês. Era, como agora lembra a excelente estratégia editorial da Susana, uma questão de conforto cognitivo. O qual não nos impedia de ler Machado de Assis, Erico Veríssimo e Jorge Amado (este lia-se muito na altura). E não nos impediu de termos continuado a ler os escritores brasileiros (agora Hatoum ou Bernardo Carvalho, o grande Nassar, ou os outros clássicos, etc.). Porque na literatura, prosa ou poesia, o discurso é diferente, a atitude leitora diversa, e a própria fluidez semântica uma nossa exigência.
Este exemplo do livro de SMV não é apenas o exemplo de uma estratégia inteligente. É, pura e simplesmente, culto. Um exemplo de cultura. De quem conhece e analisa a realidade e nela actua, benignamente. Intentando o conhecimento e a comunicação. Sem charlatanices ou lusofonices. Percebendo que a questão das dificuldades do diálogo (e da aprendizagem externa) não radica na ortografia. Mas sim nas sintaxes e nas semânticas, nos vocabulários e nas suas combinações. E que essas dificuldades são a riqueza. E nisso, sobre isso, sim, há acordo. Um acordo comunicacional, de mútuo entendimento. De mútua procura de compreensão.
E é porque isto deveria ser óbvio mas não o é que dói toda esta mediocridade ortográfica. Que é a mediocridade duma sociedade, da sua elite. Procurando, trôpega, legislar, controlar, um fluído que lhe escapa. Esse, o do conhecimento, da aprendizagem, das relações. No fundo, apenas, uma elite inculta. Irreprodutiva. Numa sociedade que a permite e reproduz. E que assim fenece.
jpt