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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ao ma-schamba comecei-o há 12 anos, lá em Moçambique, não por este monopolizado mas sim dele alimentado. Anos depois juntaram-se aqui bons amigos, pela tal amizade mas também por motivos das suas atenções ao país que nos encantara, a cada um de sua maneira. A vida correu-nos e o antes tornou-se distante. E nisso, por assim, o blog foi fenecendo, injustificado até. Terminamo-lo aqui. E se começou com um excerto do grande Rui Duarte de Carvalho ficará bem terminar com um poema de Rui Knopfli, para marcos não se podia pedir mais. Ficam os agradecimentos a quem leu, aturou, gostou e/ou resmungou.
Invernal
Corre já um arrepio pela crista
de Novembro. A imprevisível surpresa
da luz de inverno é a sua agressiva
doçura horizontal. Toma-se de frio
o ombro esquerdo, a moinha persistente
espreitando o coração cansado.
Subo devagar o Mall e a luz
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,
fina e branca, quase paralela ao solo,
como em África nunca aconteceria.
Perpendicular, fita-me de frente,
rasante ao chão como se lhe pedisse
que, por fim, me receba. Novembro,
agora pressago, Novembro, agora
sobre o ombro esquerdo, baixando,
insidioso, sobre o lado dito fatal.
Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos dos colossais
Cristais
Hilares
Que a sua grandeza lhes sonhou!
Não será um grande poema, este o de Reinaldo Ferreira, mas às vezes, muitas, é tão adequeado.
Já aqui o bloguei algumas vezes, este "O Americano Tranquilo" de Graham Greene é o livro da minha vida. Não "o melhor" que li, que isso é coisa que não há, mas aquele que mais me impressionou repetidamente. Li-o pela primeira vez ainda adolescente, ali no dobrar do 1980, nesta edição da Editora Ulisseia, um exemplar que agora herdei, comprado em 1957 pelo meu pai. Reli-o várias vezes ao longo da vida, em cada uma delas sendo iluminado e vasculhado pelo texto. Por coisas não só políticas mas também as políticas. Hoje de manhã, ao mata-bicho diante da tv, nas notícias ouço Obama e Putin. E regresso, de imediato, a Fowler e à sua distância a Pyle, esse "americano", estratega de "terceiras forças" em desconhecimento do mundo. Que agora vai com o nome Obama.
Greene olhava o mundo de modo genial. E foi um excelente escritor.
Quem ama, odeia
Adolfo Bioy Casares é um virtuoso, e aqui surge no que julgo ser o único texto partilhado com a sua mulher, Silvina Ocampo. Uma irónica novela policial: Huberman, um médico, escritor também - e aqui narrador -, sai a um longínquo hotel de praia, para trabalho literário. Aí encontra um cenário tempestuoso e onde decorre uma assassinato, de uma sua antiga doente. Ele envolve-se na investigação, com alguma arrogância e relativa pouca pertinência e eficiência.
De toda a trama fica o sorriso da presença inicial do próprio casal autoral, que Huberman retrata como companheiros de viagem e lamentando ter-lhes dado os dados para eles lhe roubarem narrativas. De resto pouco fica: recuperando a trama policial de crime situacional, encerrado, congregando um colectivo em que todos podem ser suspeitos (na prática o paradigma Christie), há o jogo da não linearidade da narrativa, mostrando (tentando mostrar) a dificuldade de encerrar a realidade num fluxo narrativo e interpretativo.
Ainda assim o texto (1946) feneceu. Vende-se por 4 euros, e é hoje um "curio".
Noivado em S. Domingo by Heinrich von Kleist
Outro dos livros obtidos nos extremos saldos da Feira do Livro de Lisboa, apenas dois euros por este exemplar. Uma pequena novela tardia (publicada no ano do suicídio do autor), deixando antever a deriva que lhe ocupou o ocaso. Será uma reflexão do tempo, romântico, sobre o que preenche a ética do amor e da lealdade.
Mas é a trama que apela a atenção: um breve episódio decorrido na revolução independentista no Haiti - e o quão interessante é perceber o racismo implícito nos textos que, até dois séculos depois, continuam a reduzir a "revolta" aquele evento histórico. Uma fugaz e abissal paixão entre um branco e uma negra é o horizonte, como o amor poderá enfrentar o conflito de grupos, como se um Romeu e Julieta colonial. Interessa como Kleist transporta uma visão da porosidade dos grupos em conflito: de um lado os acossados brancos, que não são exactamente do grupo francês colono - pois o amante Gustav e sua família Stromli são suíços. Do outro a amorosa Toni, que é também algo excêntrica, pois uma mulata.
Mas a visão da época (longa) é ainda mais interessante. O conflito que anima (e produz) a trama é apresentado como entre a crueldade negra, corporizada no líder, o "velho e terrível" Hoango, escravo que "na juventude parecera ser de índole fiel e íntegra" pelo que "fora cumulado de inúmeros benefícios pelo seu senhor", algo que não chegara para aplacar a "ira deste homem feroz". E também pela sua mulher (concubina) Babekan, traiçoeira e vingativa, e mãe da bastarda mulata. Certo é que alguns dos franceses proprietários escravistas, concede Kleist, tinham algumas atitudes excessivas, mas o conteúdo é que nada justificaria a dimensão da revolta. A qual faz perigar Stromli e sua prole, ali apresentados como valorosos e justos. A plácida, e até naturalizada, visão da escravatura, nada mais. Mesmo paternalista, como o XX lusófono (lusotropical) veio a teorizar.
A figura mais interessante é Toni, a mulata clara, bastarda repudiada pelo pai biológico, enteada do velho Hoango, corajosa e ardilosa no seu apoio ao seu amado e familiares, abandonando a fidelidade ao seu grupo de origem, os tais malévolos escravos negros revoltosos. Pois, como diz ela no final, "sou uma branca", numa inflexão identitária tão sonora. E que mostra como o texto, apesar do olhar de época de Kleist, serve para elucidar sobre os jogos identitários acontecidos, esse aclarar da raça que tão presente foi.
As Desventuras do Sr. Pinfold by Evelyn Waugh
My rating: 3 of 5 stars
Gosto muito de Evelyn Waugh, tanto que um dia me meti a escrever um texto sobre um dos seus livros, o "Um punhado de pó". Em Portugal ele ficou mais conhecido devido ao sucesso nos anos 1980s do folhetim televisivo "Reviver o Passado em Brideshead", aquele que disseminou Jeremy Irons. Acontece que se essa adaptação foi muito boa o romance era muito superior, um texto superlativo.
Só agora cheguei a este "As desventuras do sr. Pinfold", exemplar obtido naqueles saldos da Feira do Livro de Lisboa, obtido abaixo dos 5 euros. Pinfold é um escritor neo-cinquentão, deprimido, beberrão e hiper-sedado, em processo de sobre e auto-medicação, um cocktail que se torna algo alucinógeno. A (des)ventura narrada será algo autobiográfica, dizem os textos que Waugh cruzou algumas destas vielas. Mas ao texto falta algo, escolhendo um tom algo humorístico restou-lhe uma óbvia autocomplacência, tornando-o morno. Um percurso e/ou um tom que teria justificado um conto mas nem tanto uma novela como esta, algo arrastada.
Enfim, justificou-se pelo parco preço, permitindo um final de tarde aprazível. Mas nada mais.
Nas arrumações, penelopianas, das estantes cai este livrinho. Breve colecta de esplêndidos textos, os quatro primeiros que lhe dão título, poderosos e magnânimos do tempo da resistência ao nazismo invasor, como não brotar o espanto diante da elevação de quem escreveu em Julho de 1944 "Mas ao julgar o vosso atroz comportamento eu não esquecerei que os vossos e os nossos partiram da mesma solidão, que os vossos e os nossos participaram, como toda a Europa, da mesma tragédia da inteligência. E, mau grado o que vós sois, continuarei a chamar-vos homens. Para sermos fiéis à nossa fé, temos de respeitar em vós aquilo que vós não respeitastes nos outros." (54)? Ainda que,como lembrou logo em 1945, diante de "funcionários do ódio e da tortura" (84)?
Camus, que parece hoje um pouco "fora de moda" (quem fala hoje do "O estrangeiro", "A queda" ou "A Peste"?), deixa um projecto para o futuro, como se o escrevesse hoje: " ... é preciso curar todos esses corações envenenados. E, amanhã, a batalha mais difícil a ganhar ao inimigo, é no fundo de nós próprios que ela se desenrolará e a vitória final obtê-la-emos graças ao esforço superior que transformará o nosso apetite de ódio em desejo de justiça. Não ceder ao ódio, não fazer concessões à violência, não admitir que as nossas paixões sejam cegas ... (...) trata-se de admitir que o nosso adversário pode ter razão e que as suas razões, mesmo sendo más, podem ser desinteressadas. Numa palavra, trata-se de refazer a nossa mentalidade política." (85), adversa a "esse romantismo de mau gosto que prefere sentir a compreender que prefere sentir a compreender, como se sentir e compreender fossem separáveis." ( ...) "Basta que façamos o esforço de compreender sem preconceitos, basta que falemos de objectividade, para que seja denunciada a vossa pretensa subtileza e feito o processo de todas as vossas pretensões." (86).
Nele a lucidez de em 1947, enquanto refuta o marxismo pois "absolutamente falso porque pretende ser verdadeiro de uma forma absoluta" (117), identificar que "o problema colonial é o mais complexo de todos os problemas (...) determina a história dos próximos cinquenta anos (...) e nunca poderemos resolver esse problema se partirmos dos mais nefastos preconceitos." (98). Fica uma proposta, que não parece assim tão descabida na actualidade mesmo que a sua linguagem o aparente: a "democracia nacional ou internacional ... uma forma de sociedade em que a lei está por cima dos governos e que, sendo a expresssão de uma vontade colectiva, é representada por um corpo legislativo. É isto que se tenta fazer hoje? É verdade que uma lei internacional está a ser preparada. Mas esta lei é feita e desfeita pelos governos, isto é, pelo executivo. Estamos pois num regime de ditadura internacional. O único meio de que dispomos para lhe escapar é de conseguir que a lei internacional esteja acima dos governos; por conseguinte, fazermos nós próprios a lei, isto é dispormos de um parlamento resultante de eleições mundiais, nas quais participarão todos os povos." (125).
Culminando: "se por vezes parecemos preferir a justiça ao nosso país, é porque queremos amar o nosso país unicamente dentro da justiça, tal como queremos amá-lo na verdade e na esperança" (28).
Moçambique 40 anos 4 fotógrafos, no Alexandre Pomar.
A (última) carta de Virginia Woolf, no O Homem que Sabia Demasiado.
O Acordo Ortográfico e sua ideologia, ditos no Abencerragem.
A (já longa) série de textos agregados sob o título "Grécia Antiga" no Delito de Opinião, cruel iniciativa de Pedro Correia lembrando o vácuo patois dos opinadores portugueses dedicados ao estado da arte europeia. Imperdível.
Sobre isto do blogar, no Depressão Colectiva.
Bravura, no Ana de Amsterdam.
Tolerância é inteligência, pois "A pior coisa que uma pessoa pode fazer pela sua postura, é entregá-la empacotada como um julgamento moral", no Cantar das Miríades.
e
O corpo barroco de Orson Welles, uma hora de conversa com Lauro António sobre o cineasta, no À Pala de Walsh.
Sobre este "1974" de Filipe Verde já deixei duas breves notas - quando o li em versão final; e passado um mês do seu lançamento. Volto a referi-lo aqui: amizade oblige.
O livro tem passado sem grande atenção na imprensa escrita, o que será até normal (um primeiro romance; há muitas publicações no mercado nacional; o autor não tem ligações ao mundo do jornalismo). E o tema, à primeira vista pouco atractivo para o ambiente moral do universo mediático português.
Vi apenas uma recensão simpática no Diário de Notícias. E também algumas curtas referências no nosso meio, o blogal. Por isso regresso ao assunto, crente que a divulgação boca-a-boca (ecrã-a-ecrã) é o meio de divulgação preferencial. E esperando que possa fazer algum visitante aceder a um bom livro, assim fruir.
A melhor maneira de o fazer é através das palavras do autor. Ele esteve no programa da TVI 24, "Palavra de Escritor". Quem quiser ver essa entrevista (quinze minutos) poderá fazê-lo através desta ligação.
E depois, se alguém se convencer a experimentar o "1974" (editora A Esfera dos Livros) já se terá justificado este postal.
Há já um mês que aqui recomendei este "1974" de Filipe Verde. Um romance que inverte o processo político português, tornando o país um regime comunista após aquela data. Sobre isso o Verde escreve um belo e agudo texto sobre o amor, a solidão e a desesperança. E também sobre a relevância, interna e pública, do acto da escrita - repito a chamada de atenção que então fiz, muito se justifica ler o livro.
Diz-se, e vê-se, que muito se escreve em Portugal. E muito se publica. Isso é bom - que haja tanta gente com visões e sensações a transformarem-se em ficções. E que possam ser publicadas e vendidas. Tem um outro lado da face, essa profusão de edições: se não um sucesso imediato, se não vendem como papo-secos quentes, os livros desaparecem das livrarias pouco após a sua chegada, são como se fiambre de curto-prazo, iogurte azedo até. São reenviados para os armazéns das editoras, onde guilhotinhas pressurosas os aguardam, e substituídos nos ávidos escaparates por outros garimpeiros de leitores.
Por isso, para que este belo "1974" não desapareça assim, passada que já está a quinzena de guarida nas livrarias - ainda para mais porque ainda que sendo Filipe Verde autor de uma muito importante obra como antropólogo se estreia agora na ficção publicada -, vos chamo a atenção: será apresentado na Livraria Bertrand do Chiado, na próxima quarta-feira dia 25 de Março, às 18.30 horas. Quem quiser (e puder) conhecer o autor e o que tem a dizer vá até lá. Quem não o possa fazer fica aqui este aviso, para sublinhar o importante: em encontrando o livro num escaparate ou numa estante leve-o, e leia-o. É muito provável que goste.
Filipe Verde, antropólogo, professor no ISCTE, é, e cito-me, "dono da mais brilhante mente que conheço pessoalmente". Alguns dos seus textos profissionais estão disponíveis na sua conta da rede Academia, mas não está o seu "O Homem Livre", um livro super estimulante que tão urgente é reeditar.
Sempre o conheci escrevendo ficção. Agora publica o seu primeiro romance: "1974" (na Esfera dos Livros), que estará à venda na próxima semana. Nele cria uma distopia, um Portugal no qual o PCP tomou o poder após 1974. Num registo seco, nada "literato" mas também nada moralista, bota a realidade se assim. Numa breve saga familiar o abissal vácuo brotado n'"o homem [se não] livre", devastado pela verdadeira inexistência. Como se todos fossemos, e não o seremos?, apenas apanhadores de moluscos, confinados à desesperança da mera praia feita prisão.
E, deste modo, também falando das cumplicidades e namoros de hoje, das inconsciências "festejantes" da nossa vida, dos "homens livres" que nem o sabem ser nem, verdadeiramente, o querem ser. Os vizinhos, entenda-se.
Custou-me 3 euros ali na gare do Oriente, coisas, julgo, da falência da distribuidora da editora Cotovia, aqui responsável. E que bem gastos foram! De Milton Hatoum lera há anos o "Dois Irmãos", um excelente romance a mostrar um Manaus, então oferta de bom amigo brasileiro aportado a Maputo a quem eu perguntara, ignorante, "o que há para ler no Brasil?" neste deserto pós-Nassar?
Este livro de contos é excelente. Coisa de ir lá comprar mais, para ler e ofertar a quem se gosta e que mereça bons livros (também há gente de quem gostamos mas não gosta de ler ou lê coisas enfim ...). Muitos dos contos são vagamente inter-ligados, dando-nos um Manaus "desenvolvido", o Amazonas e a Amazónia regredindo, devastados, com o desencanto nada panfletário do autor, sempre personificado por personagens que partem da cidade. Outros vogam noutras direcções, o exílio europeu durante a ditadura, por exemplo. Tudo isto numa escrita rija, imaginadora, que nos põe, leitores, a imaginar o que o escritor finge que descreve, imaginando-o. Coisa de ser lida, como deve ser.
Absolutamente imperdíveis dois contos, em particular para quem tenha costela antropológica: "A natureza ri da cultura", afrontador do intelectual que se quer apropriar da cultura indígena para a defender mas, muitíssimo mais do que isso, defenestrando em escassas frases o afã "tradutor" de tantos encartados defensores que pululam. Um texto que daria para um honoris causa, só por si. E "Manaus, Bombaim, Palo Alto", também bom para antropólogos mas não só, das melhores coisas que já li sobre a Índia, sua sociedade e percurso (e, ainda por cima, com uma leve essência a la Borges, que só lhe fica bem). Só um pequeno exemplo, desse breve conto [que deveria ser obrigado nos manuais de leitura de todas essas capelas da lusofonice]:
"Tentei exorcizar a situação embaraçosa com uma pergunta: tantas línguas vivas não ameaçavam a unidade da nação indiana?
Essa é uma das nossas riquezas, afirmou o almirante. Nossas línguas são tão ricas e prolíficas quanto os deuses, embora seja difícil acreditar em milhares de divindades. Quer dizer, difícil para um ocidental."
Uma escrita excelente, um livro óptimo. Deixo mais um trecho, para ser ver a pujança do homem Hatoum: "Anos depois, num fim de tarde, eu acabara de sair de uma vara cível, e passava pela avenida Sete de Setembro. Divagava. E já não era jovem. A gente sente isso quando as complicações se somam, as respostas se esquivam das perguntas. Coisas ruins insinuavam-se, escondidas atrás da porta. As gandaias, os gozos de não ter fim, aquele arrojo dissipador, tudo se vai esvaindo. E a aspereza de cada acto da vida surge como um cacto, ou planta sem perfume. Alguém que olha para trás e toma um susto: a juventude passou." (13)
Obrigado Omar, por, em tempos, me teres dado a conhecer este Hatoum.
Arranco este livro das estantes avoengas (Emilio Zola, A Inundação, Lisboa, Parceria António Maria Pereira Livraria Editora, exactamente de 1914, tradução de Eça Leal). Tirando o célebre J'Accuse não me lembro de ter lido algo do autor, mas talvez alguns velhos exemplares quando estes tinham para aí 65 anos. Quem é o Zola, de quem tanto se fala (mas quase sempre a propósito da tal defesa do capitão Dreyfus)?
Neste livro surgem quatro narrativas (contos), mas não sei se uma colecção escolhida pelo editor português de então. Fico abismado, em particular com a primeira, exactamente "A inundação" (que é aludida na capa, um desenho que manteve as cores como se vê aqui em pobre foto de telemóvel). Inspirado numa real inundação acontecida em 1875 perto de Toulouse (o texto é de 1885), é excelente, na secura da catástrofe, no sem-sentido nada fantástico que afirma. Para nós, treinados em filmes catástrofes a la Hollywood, isto é excepcional, mete toda esse gigantesco filão num bolso. Um mestre, este Zola - se encontrarem uma edição disponível comprem.
Mais três contos: "A Morte de Olivier Bécaille" que deixo aqui narrada, e "Jacques Damour" uma narrativa, ríspida, sobre os emergentes comunistas (a Comuna de Paris), histórias aparentadas, ainda que esta com um (decerto que então inovador) mergulho psicologista sobre as origens da adesão ao movimento comunista.
E ainda "Madagem Neigeon", um conto de formação, sobre os meandros da pequena sociedade parisiense, talvez a peça hoje mais envelhecida.
Enfim, uma pérola nas estantes poeirentas. A despertar-me a vontade de mais Zola ler.
Nisto da mania de ler as "coisas actuais", de olhar para os escaparates - as novidades e as reedições canónicas - e etc. um tipo distrai-se, esquece-se das coisas necessárias, grandes escritores ou, mais do que isso, de grandes páginas ... Ora vou eu relendo isto, coisa dos anos 1950s, até distraído pois já conheço o enredo e, de súbito, esta pujança:
"Uma cabaça de vinagre despejada, os resíduos ácidos que escorrem com dificuldade pelo interior do bojo até pingarem do gargalo, espessos, vagarosos; a mão na espuma que lhe azedava os lábios; boiar numa onda incerta de enjoo e ter sede de repente como se tivesse de repente uma dor; o orvalho da noite poisava-lhe na nuca; podia erguer a cabeça tombada para fora da janela, virar a cara para o céu e beber daquela frescura suspensa pelo espaço; voltou-se com dificuldade e a moinha da água bateu-lhe ao de leve na fronte, nas pálpebras fechadas, foi-se acumulando gota a gota, deslizou em seguida pela face, encarreirou nas asas do nariz, veio depositar-se-lhe ao canto dos lábios; abriu a boca e sorveu a humidade lentamente; de súbito, qualquer lembrança remota parecida com aquilo, dias de chuva, a cabeça fora da janela, a boca aberta a aparar as goteiras do telhado, um perfil de criança recortada ao longe; a cinza da morrinha embaciava a distância, o tempo, mas havia por baixo de tudo, ao fundo das coisas, esse fulgor inapagável, o seu próprio perfil de criança, e muito mais, uma ternura dispersa pela casa paterna, por campos e pessoas, por bichos e por estrelas; o coração talhado numa grande pureza já perdida, a alma ainda livre da condenação do fogo, o corpo onde não acordara ainda o medo à morte, porque lhe era fácil então estender-se para fora da janela e beber alegremente das goteiras. Agora não. O vento impelia o marulho da treva, vinha salpicá-lo duma poeira húmida de ruínas; as costas doíam-lhe de encontro ao peitoril; mudou de posição, fez um esforço para se endireitar, fincando as mãos no rebordo da janela, e ficou cambaleante, de olhos abertos para a noite, negra de lado a lado: o luar nunca existiu, as estrelas também não, mas onde diabo terei eu visto já luar e estrelas, se nada vejo agora? O vento arrastava a poeira, apagava os astros, sumia tudo e na escuridão as coisas fermentavam. Apodreciam. Sabia-lhe mal a boca, um soluço flatulento e choco agitava-o. Deu-lhe vontade chorar, chorar apenas, sem saber de quê. Esfregando os olhos, compreendeu confusamente que estava diante da janela aberta, entontecido e indisposto, que tinha a noite pela frente e que a noite lhe fazia bater os dentes devagar, cheio de frio." (67-69)
Regularmente os mais desiludidos ou mais irados com o andar deste Portugal convocam as citações de Eça de Queirós, assim invectivando esta "choldra" de país e gente, como lhes parece ser timbre do escritor. É precioso este naco que reli há pouco, isso de como Eça pintava o "choldrismo" e os invectivadores da "choldra". Esses que ainda polvilham o país, nos seus ridículos ademanes próprios de quem vem de Celorico.
Pois Ega, esse que sempre anunciando a obra que mudará o panorama português, “O Atomo”, mas que nunca virá a surgir, acaba de chegar a Lisboa, vindo de Celorico por súplicas da mãe, convicta que ele ali, nos seus modernos modos, convocava as pragas, provocando a epidemia de “anginas diphtericas” que por lá surgiu, e narra a Carlos da Maia: “e minha mãe vem pedir-me quasi de joelhos, com a bolsa aberta, que venha para Lisboa, que a arruine, mas que não esteja alli chamando a ira divina …” (160).
Carlos olha o amigo recém-chegado: “mirava aquellas luvas do Ega, e as polainas de casemira; e o cabelo que elle trazia crescido com uma mecha frisada na testa; e na gravata de setim uma ferradura de opalas … um Ega dandy, vistoso, paramentado, artificial e com pó d’arroz” e com um “extraordinario casaco”. Pois “Por aquelle sol macio e morno de um fim de outono portuguez, o Ega, o antigo bohemio de batina esfarrapada, trazia uma pelliça, uma sumptuosa pelliça de principe russo, agasalho de trenó e de neve, ampla, longa, com alamares trespassados à Brandeburgo, e pondo-lhe em torno do pescoço esganiçado e dos pulsos de tysico uma rica e fôfa espessura de pelles de marta.
- É uma boa pelliça, hein?, disse ele logo, erguendo-se, abrindo-a, exhibindo a opulencia do forro. Mandei-a vir pelo Strauss … Benefícios da epidemia.” (160-1)
Depois segue a conversa (é quando se introduzem as personagens Craft e o casal Cohen). De súbito Ega "Desembaraçou-se da opulenta pelliça, e appareceu em peitilho de camisa.
- O quê! Tu não trazias nada por baixo? – exclamou Carlos. Nem collete?
- Não, então não a podia aguentar … Isto é para o effeito moral, para impressionar o indígena … Mas, não ha negal-o, é pesada!” (165)
Pouco depois, nesses trajes então menores, Ega reflecte e diagnostica Portugal e seus portugueses: - “Emfim, exclamou o Ega, se não apparecerem mulheres, importam-se que é em Portugal para tudo o recurso natural. Aqui importa-se tudo. Leis, ideias, philosophias, theorias, assumptos, estheticas, sciencias, estylo, industrias, modas, maneiras, pilherias, tudo nos vem em caixotes pelo paquete. A civilização custa-nos carissima com os direitos de alfandega: e é em segunda mão, não foi feita para nós, fica-nos curta nas mangas … Nós julgamo-nos civilisados como os negros de S. Thomé se suppõem cavalheiros, se suppõem mesmo brancos, por usarem com a tanga uma casaca velha de patrão … Isto é uma choldra torpe. Onde puz eu a charuteira?” (166-167)