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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Na próxima quarta-feira, 26 de Novembro, assinalar-se-á em Lisboa o cinquentenário da publicação de "Nós Matámos o Cão Tinhoso" de Luís Bernardo Honwana, livro crucial na literatura moçambicana. Na Faculdade de Letras será apresentada uma reedição (comemorativa), editada pela Alcance. E acontecerão conferências e conversas dedicadas ao livro e seu contexto, contando com várias participações, entre as quais Fátima Mendonça, Maria Alzira Seixo ou Luís Carlos Patraquim.
Quem quiser consultar o programa das actividades, que decorrem durante todo o dia, bastar-lhe-á para isso clicar aqui. Até quarta-feira.
Estante Austral (3)
"Canal de Moçambique", edição de 20/8/2014
“Noveleta” é como Luís Carlos Patraquim chamou a este “A Canção de Zefanias Sforza” (Porto Editora, 2010), um belo livro que me parece continuar a passar algo despercebido por cá. E que, agora que o escritor nos é de novo vizinho, regressado que está de Portugal, poderia (ou mesmo deveria, num sentido ético) ser reapresentado, (re)distribuído pelas livrarias, falado. Ou seja, lido.
Nele decorre a transição do mundo de Lourenço Marques ao de Maputo, um percurso que nos é apresentado através da vida desse Zefanias (Pluribis) Sforza – personagem de pluralidade afixada nesse próprio Pluribus que levou de nome, assim como se feixe desaguado diante desta baía. E onde habita também a aparência de alter ego do seu criador, o habitual poeta aqui ficcionista.
A história da cidade é-nos contada, sobre alguma da sua etnografia por via de vislumbres dos hindus, dos muçulmanos, e depois das transformações e continuidades toponímicas, ecoando as iniciais presenças coloniais e seu abrupto final. Toda ela se condensa na biografia de Zefanias e na dos seus próximos. Um estreito mundo, social e espacialmente, balizado entre as barreiras do Alto Maé e o Chamanculo – este sentido tão longínquo que seria onde o bíblico “Noé” habitaria, segundo o “saber” da personagem Agostinho Demos. Este Demos, contraponto de Zefanias, pois pólo local da narrativa, feito a verdadeira matéria-prima da cidade, como lhe anuncia o apelido (“tribo” será a melhor tradução possível de “demos” apesar de nos insistirem em o dizer “povo”). Explícita nota de um auto-centramento feito encerramento, cujo afrontar será o caroço do livro.
(O texto completo está aqui).
Enquadramentos
Karingana Wa Karigana é o nome desta exposição de Sérgio Santimano. Era uma vez… em tradução aproximada. Desde que o poeta José Craveirinha, em 1974, publicou o seu livro de poemas com o mesmo título que a expressão vem sendo glosada, do teatro à pintura, da fotografia ao cinema.
Um dos mais consagrados fotógrafos moçambicanos, Sérgio Santimano divide-se entre a Suécia e o seu país. Mas território emocional mais importante do seu já extenso trabalho é Moçambique. Índico, de corpo inteiro, fez uma vez uma espécie de autobiografia, revisitando as origens goesas. Essa Goa que se entranhou por inteiro no tecido cultural e social moçambicano.
Se a escola da fotografia moçambicana bebe no fotojornalismo, com Ricardo Rangel e Kok Nam – este último aqui em bela e agora comovedora evocação (Kok Nam em Estocolmo junto da imagem de Samora Machel em manifesta cumplicidade) – a verdade é que Sérgio Santimano se desdobrou em trabalhos temáticos de grande fôlego. Esquadrinhou as terras e as gentes da portentosa província do Niassa e caminhou ao lado dos refugiados de guerra que, após a assinatura do Acordo de Paz de 1992, regressavam às suas aldeias e lugares perdidos.
O Karingana Wa Karingana, o Era uma Vez que impõe uma dimensão narrativa ao destino e às vicissitudes individuais e colectivas de todo um povo, ganha em Sérgio Santimano uma intensidade e um enquadramento peculiares. Nele, como na maioria dos fotógrafos seus compatriotas, o enquadramento vai ao arrepio do discurso oficial, do relato épico, da visibilidade conveniente. O enquadramento é um acto moral e político, dizia Jean-Luc Godard. Sérgio Santimano empenha-se, com humaníssima atenção e sensibilidade, em nos dirigir o olhar para uma espécie de ritualização do momento dramático, como na imagem da mulher que se “lava” de todos os seus sofrimentos. É este o enquadramento que importa, o que se descentra da evidência conveniente, para iluminar e dar a ver, em proposta polissémica, o que considero o melhor do seu trabalho, a dignidade essencial da condição humana.
jptO Patraquim veio lançar mais um livro "Enganações de Boca" (Alcance Editores, crónicas publicadas em "Angolé", "África Lusófona" e "Savana", organizadas pelo Luís Cezerillo). Saio das aulas nocturnas, o regime pós-laboral, e chego-me ao Camões atrasado para o lançamento do livro. Ali, para mim casa já tão antiga, lembro-me de encomendar o "Lindenburg Blues" só para distribuir mas mais ainda lembro-me de ser novo, cabelo preto, e lembro-me muito do Ricardo Rangel, que me fez amigo e eu agradeci, aquela ironia ríspida da ternura, naquela mesma porta, desencantado no sorriso tão aberto, encantador, aflorando mas invectivando o "mesmismo", isto de sermos sempre os mesmos nos sítios e nos dias. E não vale a pena continuar porque quando me lembro do Rangel e do "mesmismo" dele fico sempre cheio das penas de não sermos os mesmos mas apenas menos, das minhas penas pelos que já foram, partidos, para longe ou para sempre ou, alguns, para o eles-mesmos, isto da meia-idade entristecida, encerrados pois nós já sem aquele qualquer coisa, enzima ou merda parecida, que me alegrou nos anos idos e talvez aos outros. E sinto as chagas disso.
O António Cabrita apresentou, antes de eu chegar, não sei que ímpias truculências terá o seu carinho universalista botado. Algumas caras conhecidas desde aqueles que para mim já são "tempos". Meia dúzia de amigos, daqueles que me fazem afivelar o sorriso e, até, a animação, gasta e falsa como a das putas cansadas. A Alcance Editores, muito ágil no panorama aqui, não deu chamussas mas bebi whiskies, e invejaram-mos. Que maior sucesso pode ter um homem, isto de lhe invejarem o que tem no copo? Pois dei-me a esse triunfo, porque não?
Coisas de um mero livro, que ainda não li, cruzei páginas e gostei, e é bom, sinal de uma juventude passada, gostarmos das coisas antes de as saborearmos, vasculharmos, isto do suspender, protelar ou até vetar o resmungo.
[António Cabrita, (meu mano) Ídasse, Luís Carlos Patraquim, o grande Naíta Ussene, sempre bem acompanhado]
jpt
[Sérgio Santimano, Macalange, Niassa oriental, 2001]
Todos teremos imagens de vida. E nessas, talvez, fotografias de vida. Esta é uma das fotografias da minha vida. Ao revê-la exposta, agora na Bienal TDM 2009, logo a paixão disse "presente". É paixão, não tem qualquer argumentação que a ancore. "Bigger than life" dizia-se do cinema quando ele o era, "Deeper than life" direi eu desta "(Mulher de) Macalange" encontrada no seu quotidiano percurso ao celeiro pelo Sérgio Santimano.
A fotografia moçambicana produziu alguns símbolos - e nesse sentido produziu a nação, construíu a identidade por via simbólica. Para cada era haverá um ou outro ícone particular: "os lavabos" e o "ferro em brasa" de Ricardo Rangel, o "banho dos soldados" de Kok Nam (que abaixo deixo), são fotos que considero particularmente relevantes. E se Rangel foi um grande reporter-narrador de Moçambique já a Kok Nam vejo-o, fundamentalmente, como um pintor de ícones - algo que obrigará à recolha da sua obra em livro, o que tarda -, bem adequado à época do seu apogeu fotógrafo, a do voluntarismo pós-independência.
[Kok Nam, "Sem título, Rio Révue, Manica, 1981". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
[Ricardo Rangel, (rapaz marcado com ferro). Reproduzida em Ricardo Rangel Fotógrafo, Éditions de l'Oeil, 2004]
[Ricardo Rangel, "Casas de Banho. Onde só o negro podia ser criado e só o branco era um homem, Lourenço Marques, 1957". Reproduzida em Bruno Z'Graggen, Grant Lee Neunburg (orgs.) Iluminando Vidas. Ricardo Rangel e a Fotografia Moçambicana, Christoph Merian Verlag, 2002]
Mas para mim, indivíduo aqui imigrado, há 3 fotografias moçambicanas que me são cruciais, que me construíram a auto-imagem, meio auto-reconhecimento, meio auto-embelezamento: uma "Aldeia Comunal" de Kok Nam (que vi na sua exposição individual da Photofesta, e da qual nunca consegui recuperar), a crucial "Apetecido Quintal de Caniço" de Rangel - as quais reproduzo abaixo -, e esta "Macalange". Um trio que faz o "meu" Moçambique. Ou melhor, me faz em Moçambique.
[Ricardo Rangel, "Apetecido Quintal de Caniço". Reproduzida em Ricardo Rangel, Pão Nosso de Cada Noite, Marimbique, 2004]
A (Mulher de)"Macalange" de Sérgio Santimano pertence a uma exposição individual dedicada à província do Niassa, que tem sido apresentada de forma itinerante. E está reproduzida - é apenas assim que a possuo - no livro "Terra Incógnita", publicado na Suécia em 2006, contendo fotografias de Sérgio Santimano e textos de Albino Magaia, Luís Carlos Patraquim, Bosse Hammarstrom, Henning Mankell.
É fruto de um longo trabalho de pesquisa, repetidas viagens à província. Um projecto possibilitado pelo apoio da "cooperação" sueca, penso que inscrito num esforço de testemunhar o papel desenvolvimentista que esta teve (e penso ainda ter) na província - o que marcará o livro, que tem como ponto fraco algum excesso de imagens (algumas pobres páginas com oito fotos cada), talvez no intuito de mostrar trabalho. Do patrocinador, do fotógrafo.
Mas esse é ponto fraco. De resto o livro é bem apetecível. Pois se "Fotografar é assumir uma responsabilidade. As imagens que ficam para trás são rastos importantes para o futuro." (Mankell) o que Santimano deixa, responsavelmente, não é apenas um conjunto de postais sobre a beleza natural do Niassa (ainda que aqui e ali ela surja, avassaladora). É o mundo humano, feito do camponês, como o espantoso "homem emergindo do rio, que não é Narciso" (Patraquim?). Mas também, e nisso rompendo com o constante e atávico olhar exoticizador dos fotógrafos em bolandas, com um mergulho no trabalho industrial do Niassa, de trazer a sua densidade, beleza. Essa a "responsabilidade" do Sérgio Santimano, a de afastar sem hesitação a folclorização. Do Niassa, do mundo. E, só assim, de o representar.
Também por isso, talvez por isso, toda a minha paixão por esta (Mulher de)"Macalange".
jpt
Luís Carlos Patraquim acaba de publicar o livro "Pneuma" (capa reproduzida daqui). A editora é a Caminho. Esperemos a edição da Ndjira.
[sobre o poeta este texto de Pedro Mexia, anterior a esta obra]
Ilha de Moçambique: o verso ...
Muipíti
Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, /Alah - o grande sacana! - sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia. / Eis-te, cartaz, convertida em puta histórica, / minha pachacha pseudo-orientala rescender a canela e açafrão, / maquilhada de espesso m'siroe a mimar, pró turismo labrego, / trejeitos torpes de cortesã decrépita. / Meu Sitting Bull de carapinha e cofió, / têm-te de cócoras na sopa melancólica / de uma arena limosa e marinha, / gaivota tonta a adejar inutilmente / ao lume de água contra a amarra / que te cinje para sempre / ao bojo ventrudo do continente. / De teu, cultivam-te a vénia e a submissão / solícitas, trazidas nos pangaios / lá do distante Katiavar, / expondo-te apenas no que tens de vil, / razão talvez para que ao longe, de troça, / pisquem mortiças as luzes do Mossuril / ou sangre no meu peito esta mágoa incurável. / Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas, / caminhos sempre abertos para o mar, / brancos e amarelos filigranados / de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou muçulmana) durando no ar, / no sangue, ou no modo oblíquo como o sol / tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho / com a luz da eternidade. / Primeiro a ternura da mão que modulou / esta parede emprestando-lhe a curva hesitante / de uma carícia tosca mas porfiada / logo o cheiro a sândalo, o madeiramento / corroído da porta súbito entreaberta, / o refulgir da prata na sombra mais densa: / assim descubro subtil e cúmplice, / que a dura linha do teu perfil autêntico / te vai, aos poucos, fissurando a máscara.
[Rui Knopfli]
... e o anverso?
Muhípiti
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira / harmonizando-nos o sonho. A sombra. / Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre / as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos / brincam aos barcos com livros como mãos. / Onde comemos o acidulado último gomo / das retóricas inúteis. É onde somos inúteis. / Puros objectos naturais. Uma palmeira / de missangas com o sol. Cantando. / Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmo / se marulham as vozes. A estatuária nas virilhas. / Golfando. Maconde não petrificada. / É onde estou neste poema e nunca fui. / O teu nome que grito a rir do nome. / Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam. / E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo. / Uma palmeira abrindo-se para o silêncio. / É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos / naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar / nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha. / É onde me confundo de ti. Um menino vergado / ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul / humedecido sobre a fonte. A memória do infinito. / O repouso que a si mesmo interroga. Ouve./ A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos. / Onde os pássaros são pássaros e tu dormes. / E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde / Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo. / Na Ilha. Incendiando-nos o nome.
[Luís Carlos Patraquim]
Leio, em pequena nota de jornal de fax, notícia da publicação em Portugal do novo livro de Luís Carlos Patraquim: "O Osso Côncavo e Outros Poemas" (Editorial Caminho). Se não estou em erro o primeiro livro desde "Lidenburgo Blues", já de 1998. Talvez...
Fica-se aqui à espera. A ver se alguém o faz aqui chegar mais depressa do que o "Manual das Mãos", a última obra de Eduardo White, saída há meses em Portugal pela Campo de Letras, e que só agora encontro aqui, em dois escaparates (mas só nesses dois).