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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Morreu Mário Coluna, o grande jogador, o Monstro Sagrado. Nunca o vi jogar, apenas breves excertos de arquivo televisivo. Outros poderão falar sobre o antigo capitão do Benfica e da selecção portuguesa, bi-campeão europeu e eterno campeão português, extraordinário jogador reza a lenda, e acredito totalmente nela. E sobre a sua carreira de treinador e dirigente desportivo. Ficou também um livro, sua biografia, da autoria de Renato Caldeira (publicada em 2003 em Maputo) - o qual vale a pena ler, também como documento daqueles anos d'ouro do futebolista Coluna.
Conheci-o mais tarde, gentilíssimo, quando cheguei a Maputo. Vinha às actividades culturais nas quais eu estava presente. Era convidado e vinha. A gente esquecia-se logo da pintura, escultura, literatura ou outro qualquer assunto, rodeávamo-lo ouvindo histórias, e pedindo mais. E ele, com aquele sorriso cheio, que lhe era tão próprio, aquela voz cava, contava mais. Às vezes deixava escapar alguma mágoa, podia ter sido milionário, o dinheiro que lhe ofereciam os grandes clubes italianos teria dado para comprar prédios na Av. de Roma, confidenciava - e na época esse teria sido um investimento certo. Mas o Benfica não deixara, Salazar não deixara. Conto a história, tantas vezes por ele repetida, porque a ouvi várias vezes e em versões não tão encomiásticas das autoridades de então, como já mais tarde, no ocaso da sua vida, a história foi ecoada pelos jornais.
Lembro-me que quando o conheci fiquei um pouco indeciso, como o tratar? Ele, estrela respeitável e neo-sexagenário. Escolhi "Mestre", que o era. Mas desisti, após algumas vezes, pois todos o tratavam, com desvelo, carinho e grande respeito, por "Monstro". Sim, Senhor Mário Coluna em modalidade mais protocolar, quando diante d'outros, mas entre nós, admiradores, "Monstro". Ao longo dos anos encontrei-o nos palcos de convívio, ele envelhecendo, eu também. Belas conversas - uma vez quase se zangou comigo quando tive a audácia de alvitrar, em mero diálogo, que no tempo dele havia "mais espaço" em campo, os jogadores ocupavam-no menos. Calei-me, quem manda um leigo meter a foice em seara de Mestre.
Há pouco tempo morreu Eusébio - até nisto estão juntos. E a selecção do Além está a receber grandes reforços, estes dois a entrarem de caras como titulares. Li na altura alguns dislates sobre a "identidade" de Eusébio - as pessoas têm défices culturais grandes, aprisionadas no mito da monoidentidade. Que a pobre polémica não se repita agora: Coluna era um homem muito orgulhoso do seu passado futebolístico, nisso sendo uma homem aprazível e nada arrogante. Muito orgulhoso dos triunfos, do seu enorme talento, de ter sido companheiro de quem foi (e falava com desvelo dos jogadores de então). Também de ter sido, ainda para mais vindo das suas origens mescladas e moçambicanas, capitão do Benfica e da selecção portuguesa. E era moçambicano, com prazer e orgulho - quantas vezes resmungão, como cada um de nós no seu país. Para além disso adorava, e de que maneira, o Sport Lisboa e Benfica.
Viva Coluna, Viva o Monstro Sagrado. E, por ele, só por ele, Viva o Benfica!
Foi o primeiro jornal do qual fui leitor e cliente, o meu pai (que nunca leu um jornal desportivo na vida, e foi apenas duas vezes ao futebol na vida, para me acompanhar em 1975 ao Sporting-Olhanense e ao Sporting-Porto) dava-me dinheiro para o ir comprar. Na época, início dos anos 1970s, a era de Joaquim Agostinho e Vítor Damas, publicava-se três vezes por semana (segunda, quinta e sábado). Nele escrevia gente como Carlos Miranda, Carlos Pinhão, Alfredo Farinha, Aurélio Márcio, Vítor Santos, Homero Serpa. Escreviam bem, olhavam o mundo também, aquilo do "Hoje jogo eu" era antologizável, e eram ecuménicos, gente com simpatias clubísticas mas que escreviam sobre desporto e disso faziam vida inteligente (e o arquétipo era o enorme Carlos Pinhão, benfiquista ferrenho com um humor finíssimo, que a todos conquistava), sem o bacoquismo faccioso que a descendência arvorou.
Li-o, militantemente até aos anos 1990s, quando por lá ainda escreviam amigos vizinhos como o Afonso Melo e o João Matias. Depois, cansei-me daquilo. O jornal envelheceu, não se conseguiu adaptar ao fluxo de informação vindo do novo mundo de comunicação televisiva, as parabólicas de então, e à atenção que estas permitiam não só ao futebol internacional como, acima de tudo, à diversidade de desportos internacionais (o râguebi mundial, o basquetebol americano, a própria Fórmula 1 bem analisada, etc.), algo que o "Record" (e a própria "Gazeta dos Desportos", já desaparecida) conseguiram de modo pioneiro na imprensa escrita portuguesa. Mas o pior foi o fim do ecumenismo (mesmo que mitigado) casado com a mediocratização da escrita - uma opção pelo público benfiquista, algo que o benfiquismo dominante na geração anterior dos jornalistas não tinha imposto, e a prosa rasteira. Uma tralha que sempre exemplifico com uma primeira página, já bem mais tardia, que saudava o novo corte de cabelo de Simão Sabrosa, o então jovem ex-sportinguista contratado pelo Benfica.
Mas este meu desgosto, já de décadas, com "A Bola" oscila agora, face à memória dos meus 8-9 anos, quando saía da praia às 10.30 para ir para a bicha de compradores do jornal, ali na rua dos cafés de São Martinho do Porto, que o jornal chegava (de Lisboa) às 11 horas. E logo esgotava. Tempos em que os dedos se sujavam com a tinta do jornal ...
E oscila porque vejo a notícia da edição moçambicana de "A Bola", cujo primeiro número sairá hoje. Presumo que se tratará de uma mescla de conteúdo português com conteúdo moçambicano, um pouco à imagem da edição aqui do "Sol". Antevejo-me a comprar um ou outro exemplar.
O lançamento da iniciativa foi ontem, e as fotografias acessíveis mostram como a empresa se articulou no país político e económico. Ocorre ainda inserido na viagem a Moçambique do ministro Miguel Relvas, acompanhado de uma delegação de responsáveis federativos do desporto português, para além do "King", Eusébio da Silva Ferreira. E também empresários portugueses acompanham a iniciativa, como os empreendedores imobiliários Luís Filipe Vieira e António Salvador.
Também hoje, e no mesmo contexto político, Mário Coluna, o grande "Monstro Sagrado", será condecorado pela estado português, recebendo o colar de honra da ordem do Mérito Desportivo. E isso sim, sem qualquer hesitação, saúdo. Viva o "Monstro".
Renato Caldeira, Coluna. O Monstro Sagrado, Maputo, Edisport, 2003
O jornalista Renato Caldeira escreveu e publicou a biografia de Mário Coluna, o Monstro Sagrado. Uma desilusão. Num livro com tamanha documentação fotográfica exigir-se-ia muito mais cuidado (e até bom gosto) na impressão e na paginação do livro, bastante descuidadas. E já nem falo no recurso a cores, decerto que o preto e branco é uma opção devida aos custos. Mas com tanto benfiquista (e não só) por esse mundo não deveria o livro ter sido pensado para exportação? Neste estado duvido que ultrapasse o universo dos indefectíveis.Não há dúvida, Coluna merece melhor.
O texto é superficial, um registo de entrevista suave entrecortada por breves declarações de algumas personagens que contracenaram com Coluna. Alguns episódios desgarrados (ainda haverá paciência para o jogo da Coreia?) e uma série de elogios, decerto que merecidos mas que surgem circunstanciais. Ficamos com uma ideia sobre o que fez Coluna, mas muito pouco sobre quem é Coluna, o que representou, de onde saíu e onde viveu, e acima de tudo, quase nada sobre o que pensa.
Não se pediria uma obra académica. Mas fica um enorme vazio. Da juventude, do filho de cantineiro português e camponesa changana, afastado da mãe com quatro anos, criado para o desporto naquela malha de clubes de LM que tanto representaram a estratificação da sociedade colonial, nada de substancial. Do jovem em Portugal tão pouco. Do mulato capitão do Benfica (aquele que era uma Nação, a dos “bons pais de família”) e da selecção dos anos 60 passa-se a correr. É um quase nada, à excepção do episódio do inspector da PIDE a torná-lo “branco”, ali a demonstrar o como a cor é apenas é estatuto, mas sem que o texto seja consciente.
E do homem que logo regressou a Moçambique, que o percorreu trabalhando, e onde é um Senhor. Que acha ele do seu país, da sua história?
Pela biografia Coluna é mais do que o Monstro Sagrado. Surge também como personagem-charneira do fim do império [e, caso alguém leia isto, charneira não significa duplicidade, que isto de más-vontades abundam]. Talvez mais do que qualquer outro vulto, pela importância simbólica que teve no Portugal de Salazar, pelo seu imediato papel em Moçambique. Daí a importância do seu olhar, o qual aqui não sobressai.
Enfim muito ficou para dizer, e acima de tudo, muito para perguntar. Não há dúvida. Os admiradores merecem melhor.