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Repensar Portugal

por jpt, em 21.12.11

 

Um texto de Manuel Antunes, escrito em Abril de 1979 (integrado em Repensar Portugal, Multinova, 2005). Não consigo evitar a extensa citação. E deixar de recomendar a leitura do texto integral.

 

"Nos últimos cinco anos, houve em Portugal ... fantasia a mais e pensamento a menos; houve anarquia a mais e estrutura a menos; houve infantilismo a mais e maturidade a menos ... Pretendeu-se eliminar, na boa fé de alguns ou nos desígnios calculistas de outros, a necessidade e a urgência daquela reforma de mentalidades, daquela mutação de valores, daquela revolução dos costumes e das instituições, de tudo aquilo, numa palavra, que constitui o viver de um povo na sua mentalidade, na sua história, na sua cultura.

Não se começou pelo mais importante e nem sequer se atendeu, como cumpria, ao mais importante. Faltou ou adiou-se em excesso uma autêntica pedagogia de mudança, da necessidade e da consciência da mudança. Porque não havia pedagogos ou porque aqueles que havia não eram escutados no enorme vozerio ...? Pelas duas razões foi. [...]

Atrevo-me a dizer provocativamente: o Portugal de hoje tem necessidade não de saciados mas de famintos em espírito; não de repetidores de gestos próprios ou alheios mas de pesquisadores; não de mandarins mas de profetas; não de reformados da vida mas de comprometidos até ao fundo com a mesma vida; não de ideólogos mas de contemplativos (de contemplativos na acção, entenda-se); não de representantes do particular, do campanário da própria aldeia (partido, seita, grémio, clube) mas do vasto mundo, literalmente do universal. Só eles poderão depois, com conhecimento de causa e sentimento pela causa, ver o concreto, analisar o concreto, assumir o concreto no sentido de o transformar. O Portugal de 1979 tem necessidade, pelo menos tanto como de pão para a boca, de passar da heteronimia à autonomia, do individual ao comunitário, da inconsciência mais ou menos colectiva à consciência o mais crítica e universalmente generalizada. Se isso é função de todos, é-o, muto em particular dos chamados "homens de cultura".

É a eles, sobretudo, que compete perguntar e ao menos tentar responder a estas questões de base: Quem éramos nós? Em que realidade colectiva nos transformámos? Onde estávamos? Aonde regressámos? Para onde caminhamos? De onde nos virá no concreto a libertação? Que meios utilizaremos para a tornarmos efectiva, quer dizer adaptada à comunidade que fomos e, sobretudo, à comunidade que somos? [...]

Que espécie de sociedade desejamos? ... Uma sociedade em que estejam definitivamente para trás de nós o liberalismo atomista e o colectivismo totalitarista ... em que não se maximize o lucro nem se sacralize o poder. Um sociedade em que o Estado, em vez de fim em si mesmo e de fim dos grupos que o compõem, se encontre, de verdade, ao serviço da comunidade das pessoas que o excedem em toda a linha. ... Uma sociedade em que a liturgia do ser elimine, vá eliminando, a liturgia do aparecer em que a sociedade portuguesa, ao longo dos séculos, tão fecunda e faustosa tem sido. ... Uma sociedade em que o enfrentamento seja substituído pela confrontação, a competição dê o lugar principal à competência e a solidariedade vá, gradualmente, assumindo a categoria da igualdade na alteridade. [...]

Uma sociedade em que o espectro da mentira generalizada pela propaganda, da mentira que gera a mentira, por omissão ou comissão, se encontre afastado para o mundo das trevas exteriores. Uma sociedade em que os messianismos secularizados não se apresentem como substituto fácil da fé na transcendência e em que esta não possa cobrir com o seu manto protector um mundo de superstição ou de interesses bem mesquinhos. Uma sociedade em que a ideologia ou sequer o real conhecimento não se subordinem à experiência vivida. [ ...]

Uma sociedade em que os mass media não gastem os recursos de todos a defender modelos culturais estranhos: o do êxito material como norma; o da mulher-objecto como parte; o do consumo pelo consumo como princípio dos princípios. Uma sociedade em que a força motora do progresso seja a fidelidade criadora - ou recriadora - aos melhores valores do passado: o sentido da honra e da descoberta, o amor ao torrão natal e a paixão da aventura, a procura épica do universal e o lirismo da acção concreta, a orientação para a transcendência e o humanismo dos limites, entre outros. [...]

Uma sociedade em que o capital-esperança não corra o risco de ser desperdiçado como tantas vezes na nossa história [ ...]

Utopia esta sociedade dos nossos desejos e aspirações? Talvez, em parte. Mas, sem um mínimo de utopia, as sociedades humanas em geral e a portuguesa em particular ou caem na greve de braços caídos ou entram pelo labirinto de todos os maquiavelismos e oportunismos ou, mais gravemente ainda, sentem-se à beira-nada, esperando, num desespero, a própria morte ..." (28-33)

"Como e porquê aconteceu assim? Eis aí perguntas que requereriam como resposta adequada duas condições aqui e agora irrealizáveis: o distanciamento no tempo e um conhecimento documental de tal ordem que eliminasse o domínio do simples palpite, a procura fácil do bode expiatório e a linearidade de um processo histórico que, ao contrário, parece ter sido terrivelmente complexo e difícil e onde o analista pode suspeitar, com fundamento, ter havido de tudo: lealdade para com a Pátria e a mais alta traição ... " (28)

[Manuel Antunes, "Repensar Portugal. Nota de Abertura", 1979]

Adenda: nos comentários AMCD lê a colocação deste texto como se fosse uma crítica ao "cinco anos" referidos pelo autor (que escreve em 1979) e, como tal, como um esquecimento do tempo que entretanto passou. Aceito que a citação possa induzir esta intenção. Mas é exactamente o contrário - o que impressiona é a actualidade do texto. Espero que isso possa ser óbvio para os que aqui passam.

jpt

publicado às 02:23


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