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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Tenho com Marcelo Mosse uma relação ambivalente. Gabo-lhe a inegável coragem intelectual e física, que faz deste ex-puto um tipo a respeitar. Torço o nariz a alguns desvarios que nem a ex-puto se deveriam perdoar (e sei muito bem do que falo, que até a mim já me calharam). Mas enfim, acho que o positivo se impõe e bastante.Mesmo assim fiquei surpreendido com o artigo de hoje do Público. Surpreendido porque muito pela positiva, pela excelência.
[A ler obrigatoriamente, esteja lá onde estiver o leitor. O negrito é meu]
O Outro Problema de Cahora Bassa
Por MARCELO MOSSE
Sexta-feira, 09 de Abril de 2004
O futuro da Hidroeléctrica de Cahora Bassa (HCB) não pode ser visto apenas pela perspectiva da maximização do lucro com a venda de energia eléctrica e do saneamento financeiro em função da dívida pública portuguesa, como pretendem os governos de Moçambique e de Portugal. Há uma componente social e ambiental quase catastrófica que, porventura, é pouco conhecida em Portugal e que, no seu auto-elogio enquanto negociador do intricado diferendo tarifário com a Eskom sul-africana, Luís Mira Amaral descurou completamente, num texto publicado na última edição do semanário "Expresso" (3 de Abril de 2004).
Convenhamos que as tarifas que a Eskom (companhia de electricidade sul-africana) vem pagando pela energia da HCB (durante muitos anos situadas em 2 cêntimos de rand/kwh) eram absurdas do ponto de vista custo-benefício (sendo fundamental a subida para 12,5 cêntimos de rand/kwh em 2007, em função do acordo recente, louvando-se, por isso o esforço negocial). Convenhamos também que continua a ser absurdo que Moçambique compre à Eskom a energia que produz, situação herdada do perfil colonial, que hoje perdura, de economia ao serviço da República da África do Sul.
Também foi absurda a destruição das torres de transmissão durante a guerra, como é absurdo que cerca de 90 por cento da população moçambicana não tenha ainda acesso à sua própria energia eléctrica. É igualmente absurdo que o empreendimento da Mozal tenha preferido comprar energia térmica e mais cara à Eskom, ao invés de usar Cahora Bassa, numa jogada estranhíssima engendrada pelas elites políticas e económicas de Maputo.
De acordo com Mira Amaral, a única coisa que preocupa Portugal relativamente a HCB é a garantia das condições para a sua viabilização económico-financeira, e apenas isso, e só depois é que haveria condições objectivas para a transferência da posição accionista de Portugal para Moçambique. Todo o perfil negocial sobre Cahora Bassa, na visão de Mira, assenta nessa maximização dos "cash flows", pois esse é o "grande problema nacional" português.
Por outro lado, Portugal, daqui para frente, estará apenas interessado a "negociar questões jurídicas, técnicas e económicas de grande complexidade e também discutir qual a percentagem com que Portugal com que ficará na HCB em nome da cooperação Portugal-Moçambique".
É terrível esta ditadura de cifrões à volta da HCB.
É imensamente terrível quando sabemos que a HCB é também uma grande fonte de problemas para Moçambique, fonte de pobreza e instabilidade social, uma vergonhosa externalidade contra o sistema ecológico local e regional e mundial. Esta é uma componente que tem vindo a ser esquecida nos longos anos da HCB e que não mereceu uma linha sequer, uma palavra por mais que escassa, do brilhante negociador.
Se o seu texto no "Expresso" é uma espécie de prestação de contas sobre essas negociações quase que secretas à volta de um empreendimento público luso-moçambicano (um secretismo que leva os moçambicanos a interrogarem-se sobre se a HCB vai, no futuro, continuar propriedade pública ou será "alienada" por interesses político-privados do eixo Maputo-Pretória), é ensurdecedor o silêncio de Mira Amaral quando à gestão ambiental da hidroeléctrica.
E Portugal tem responsabilidades a este nível.
A conclusão de Cahora Bassa em 1974 interrompeu as cheias anuais do rio Zambeze, os fluxos normais, e mudou os hábitos da população que vivia nas proximidades das várzeas. Antes de Cahora Bassa, o Zambeze inundava vastas áreas da sua bacia, incluindo o delta, as quais permitiam uma série de actividades de subsistência beneficiando mais de um milhão de camponeses. Com a sua conclusão, a bacia e o delta passaram a receber apenas 80 por cento das águas, estas reguladas através de comportas e com um caudal muito abaixo da média normal do período antes da regulação.
Como consequência, o regime hidrológico natural alterou-se completamente. O actual cenário no delta é de seca generalizada em longos períodos do ano. Estudos recentes mostram que as mudanças na hidrologia resultaram na perda de mais de 25 por cento dos habitats naturais do delta em 30 anos, causando uma queda drástica na ordem dos 95 por cento da fauna. Por outro lado, estima-se que a pesca industrial do camarão num distrito da Zambézia, junto ao delta, se reduziu drasticamente, dadas as dificuldades de regeneração da sua população em função da alteração ecológica causada.
Sabe-se que durante duas décadas, a barragem operou como uma anomalia permanente no "continuum" do rio Zambeze e, em 1996, logo que a paz o permitiu, um reconhecimento aéreo evidenciava claramente o impacte ecológico da sua negligente administração. Não mencionamos os prejuízos na pesca semi-industrial e artesanal em outras regiões sob a influência da hidrologia do Zambeze; da pesca artesanal nas terras húmidas, restringida agora aos leitos dos rios; da agricultura de subsistência a montante e a jusante.
A organização ambientalista moçambicana Justiça e Ambiente considera que a perda do padrão das cheias no Zambeze resultou da "má administração das águas da albufeira da Cahora Bassa". Um estudo realizado por Richard Beilfuss para a World Comisson of Dams refere que, depois de longos anos de má gestão, a situação no delta é dramática e muito terá de ser feito para se restabelecer os seus equilíbrios.
Mas isto passa por uma transição das abordagens meramente económicas para um quadro analítico que considere o profundo valor cultural e ecológico que o Zambeze representa para Moçambique, para a bacia do mesmo nome, que cobre oito Estados da região e para o mundo. Passa por negociadores brilhantes como Mira Amaral demonstrarem um pequeno pedaço de consciência ambiental.
Numa época em que as questões ambientais têm manifestações locais mas repercussões mundiais e em que as sociedades civis actuam transversalmente à escala internacional, dado o carácter internacional da gestão económica e dos seus efeitos no equilíbrio ecológico global, parece-nos justo exigir um esclarecimento público por parte da administração da HCB, e dos governos português e moçambicano uma informação actualizada sobre a gestão ambiental da hidroeléctrica.
Como membro da União Europeia, que se rege por princípios de economia ecológica e de governação sustentável, estabelecidos justamente em Lisboa e donde ressalta o princípio da responsabilidade ("o acesso aos recursos ambientais acarreta a responsabilidade de os utilizar de um modo ecologicamente sustentável, economicamente eficiente e socialmente justo"), Portugal é obrigado a dar uma explicação sobre todo o historial de degradação ambiental proporcionada pela HCB. Eis, pois, uma belíssima oportunidade para que os eurodeputados portugueses em Bruxelas, que levantaram questões sobre o tráfico de órgãos humanos em Moçambique, também chamem a atenção para este assunto. Em nome dos princípios de Lisboa.