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A hipocrisia

por jpt, em 21.10.15

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 (Montepuez 1994) 

 

Em 1994-5 vivi 5 meses numa aldeia a 40 kms de Montepuez, a velha Namwenda, renomeada N'ropa após a independência, o meu primeiro trabalho em Moçambique, chegado da África do Sul. Foi uma experiência abissal para este burguesote, mesmo que já viajado. Não tanto as histórias camponesas ouvidas, que faziam parte do trabalho, sobre o ainda quase recente tempo colonial, o trabalho forçado, o imposto, a cultura forçada, a repressão, a chambucada, a prisão e a morte, narradas até já entre-sorrisos, que foram e ainda são um escarro pejado de muco na merda do lusotropicalismo que os socialistas soaristas chamaram lusofonia e que tantos patrícios ainda agitam (há hoje mais um artigo no Público sobre isso, mesmo que nesse requebro da aparência crítica do turismo universitário). E que também sempre me originam um encolher de ombros, compreensivo, nos arreigados negacionismos dos velhos colonos, saudosistas esmagados pelo drama histórico de que quase sempre foram meros peões. Nem tanto também as histórias sobre a guerra da Renamo, então ainda tão recente, aquilo dos raptados, refugiados (e tantos), de toda a desgraça acontecida. E não tanto por causa desse historial porque já lera, e bastante, sobre aquilo tudo, ainda que assim narrado de viva-voz, e só porque eu perguntava, tivesse tão mais efeito. Abissal porque rude, rudíssimo, não só no meu corpo, lesado em 28 quilos sem qualquer doença, abissal porque a partilha da morte, da doença, da pobreza radical, uma coisa inimaginável. Abissal porque nisso tudo também a partilha de tantas mais coisas, aquilo do sentir, da infinita capacidade de sermos felizes ainda assim, daquele modo.

 

Não fiquei "macua", nunca disse "a minha aldeia", não fiz "ritos de iniciação" nem me filiei como curandeiro ou chefe de tradição, não procriei por lá, não aderi às causas então ali vigentes, não me me transformei "num deles" (nem digo "eles", já agora), nunca entrei nessa pantomina folclórica tão usual entre antropólogos (e também nos missionários do desenvolvimento). Pura e simplesmente, nunca mais fui o mesmo. E sei que o meu melhor, por parco que seja, aconteceu ali entre Balama e Montepuez, o resto foi só o futuro, todo degenerativo à excepção da paternidade. Só voltei uma vez, uma década depois, como contei aqui, para perceber que não poderia voltar a voltar, não aguentaria, o tempo passara. Em suma, não fiquei "de lá". Mas, e para sempre, fiquei lá, algo de mim por lá ficou. Por  isso já pedi a amigos próximos, se eu rebentar de repente não quero isso do velório nem funeral. Dois deles que levem os restos à cremação, e que se faça um pequeno bar aberto. Depois, se ainda for necessário, apoiem a minha filha e, se houver dinheiro para isso, mandem os restos para alguém de Maputo ir ao charco de N'ropa largá-los, sem mais nada do que isso.

 

Nos finais de 2000 houve manifestação em Montepuez, congregando população do distrito. A polícia prendeu participantes, encerrando-os na cadeia da pequena cidade - edifício que conheço, pois tinha-o visitado. Nessa noite morreram 120 pessoas, asfixiadas numa cela onde tinham sido inenarravelmente confinadas. Eu sei que não foram ordens presidenciais nem do governador da província, foi um monumental sinal da insensibilidade da administração civil e policial local e também um sintoma da crispação dos tempos (que por vezes regressa). Foi um dia horroroso, que senti como amputação, desesperante. Não chorei a "minha gente" (que não o era) nem "aquela gente" (que não o era). Chorei-me, chorei-os.

 

Nesses mesmos dias em Maputo reunia-se a Internacional Socialista, então presidida por António Guterres. Sobre o assunto nem uma palavra proferiram. Joaquim Chissano foi então eleito vice-presidente da IS, coisa que a gente sabe protocolar (havia para aí 70 vice-presidentes) mas que teve efeito propagandístico interno. Estou à vontade nestas coisas: acima disse que sei que Chissano não ordenou aquilo (nem nunca o faria); e se eu fosse moçambicano seria um frelimista crítico e, mais ainda, como aqui escrevi, um chissanista. Mas naquela altura o silêncio de Guterres, ainda para mais nosso primeiro-ministro, e de todos os outros, e o sufragar do responsável político daquela catástrofe avassalou-me. Nem na altura nem depois, no circo constante de visitas governamentais e privadas (negócios) dos inúmeros políticos socialistas que cruzavam Maputo, alguém referiu o assunto. Já agora nem António Costa, também ministro, por lá em visitas ministeriais para afinal passar férias no Bazaruto, em agressão ao papel institucional que lhe cabia. Uma coisa execrável.

 

Quinze anos depois são os mesmos políticos que andam por aqui. E vejo os opinadores de esquerda, e até políticos (agora a Mariana Mortágua), muito ofendidos porque o actual governo não actua, qual Norton de Matos, com os prisioneiros em Luanda, não afronta a cleptocracia angolana, se subordina a vis interesses diplomáticos e económicos. Depois, esgotado o quinhão de solidariedade com os crioulos luso-angolanos presos de consciência (e que não se duvide: liberdade para eles, já!), toca de escrever e batalhar para meter estes socialistas (os velhos silenciosos sobre Montepuez) no poder, os gajos dos negócios austrais. Enquanto se lamenta que Guterres, esse bom estadista, não se tenha candidatado a Belém. Porque isso dos camponeses, ainda por cima mesmo pretos, que se fodam.

 

E nós também, com este lixo de gente. De "esquerda", dizem-se. Chama-se a isto hipocrisia. Imunda.

 

 

publicado às 17:05

"Basta Viver": 1 ano de Portugal

por jpt, em 09.09.15

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 (Ilha do Zambeze, entre Manica e Tete, meados de 00s)

 

 

Março passado, já em Março, numa sexta-feira fui jantar com grande amigo, daqueles ... Chegados àquilo dos cafés quis pedir uísques, novos e parcos por causa dos preços, mas ele negou-se. Pois vive fora de Lisboa, iria guiar, não podia passar daqueles dois ou três copos de vinho que corrêramos. Viu-me desencantado e aventou que fosse eu para casa dele, beberíamos algo noite fora, nisso conversaríamos, dormiria eu por lá e regressaria no dia seguinte de comboio. A sede apertava, assim fiz(emos). Na manhã, já sábado feito, hora do almoço, regressei à capital no tal cavalo-de-ferro, indo para um seminário, não sabia ainda que para ouvir daqueles antropólogos emp(r)enhados, cheios deles mesmos a julgarem que isso são causas, aquelas aparentes das gentes com as quais trabalharam, observando-as. Aportei à estação de Entrecampos no intuito de me chegar ao ISCTE, o local onde falaria o revolucionário encartado, por corso doutoral, e alguns outros. O dia ia soalheiro e ali mesmo na Av. da República, enquanto marchava, tirei o casaco, pendurando-o no indicador direito e abandonando-o ao ombro, mesmo como se funcionário. Depois, já na esquina da "Forças Armadas", avenida assim ascendente, e porque o calor já apertava, transpirando-me, tirei o pull-over. E só depois, alguns passos passados, me apercebi, quase lacrimejando, e digo-o sem exagero: estava em mangas de camisa, ainda que compridas. E há mais de seis meses que não andava na rua assim.

 

Lembro-me muito disto, do gélido que andei, e do como tanto o notei naquele dia d'alvorada da primavera, esfuziante com aquela liberdade de súbito sentida. E hoje mesmo ainda mais, este hoje entre 8 e 9 do Setembro. Pois faz agora um ano que parti de Moçambique regressando à "Pátria Amada" (aquele tão pleonasmo moçambicano). E porque um blog é mais do que tudo um diário aqui refiro a data, partilhando um bocado, ainda que sem o dizer, do que quebrou então mas que se vai colando devagar no esforço das cálidas mãos amigas. Pois é difícil o regresso, quase-exílio no princípio. A sarar também, que Portugal é lindo. E, muito mais do que tudo, porque "basta viver", como aprendi, um duro dia, lá no Zambeze.

 

Para cantar isso, essa verdade, deixo 4 canções, 3 que são "standards" e uma, a "Piloto Automático", que o virá a ser. Como se banda sonora da vida, esta que me basta ...

 

 

publicado às 00:37

Gastronomia moçambicana em Lisboa

por jpt, em 22.08.15

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Que Lisboa é na actualidade um ponto turístico global é óbvio. A cidade fervilha de turistas, de lisboetas e de locais aprazíveis para o festejo. E é Linda. É, já aqui o disse, maningue nice. Mas tem falhas, algumas clamorosas. Até agora a mais dolorosa que identifiquei é a, até surpreendente, ausência de um bom restaurante dedicado à gastronomia moçambicana. Sim, sei que há pelo menos 3 que disso se reclamam. Mas as vozes dos conhecedores são letais: não ascendem a nada mais do que matar as saudades dos mais irredutíveis. Alguns dos mais fatalistas tentam amansar os desesperados palatos com o argumento da falta de ingredientes disponíveis. Nada mais falso, os produtos estão presentes nos mercados mais acessíveis. E tudo se poderia congregar para abrir um verdadeiro restaurante moçambicano: público e publicidade, daquele boca-a-boca, não faltariam.

 

Esta minha reflexão, manifesto, é sustentada na empiria. Comprovei-a ontem, num evento acontecido numa residência particular ao bairro dos Olivais, ex-periferia da capital. Um académico moçambicano, elevadamente rompendo os estereótipos do "género", cozinhou isto: macouve, mboa, caril de camarão, feijoada (de feijão nhemba!!!) com galinha, acompanhados de xima (e arroz, este ausente da foto), com piripiri e achar à disposição. Estava tudo soberbo - demonstrando à exaustão a densidade etnográfica do intelectual autor; evidenciando as possibilidades da prática deste tipo de arte nesta cidade.

 

Se um Amador (palavra de grande respeitabilidade) consegue um êxito desta monta não percebo como é que não avançam os profissionais. O sucesso, repito, seria garantido.

publicado às 17:15

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Fui mais vezes ao Porto neste 2015 do que no meu anterior meio século, isto apesar de filho de portuense. Coisa de por lá ter coadjuvado uma disciplina num mestrado. Foi maneira de voltar ao meu pai, claro. Mas também de aprender a cidade, de saber amar o Porto, uma tarefa que apenas iniciei e para a qual ainda me faltará algum caminho. Fui sempre muito bem recebido, "terra de boa gente" julgo ter ouvido dizer que assim lhe chamam.

Um desses dias colega cicerone levou-me à obrigatória Ribeira e depois fez-me escalar uma enorme escadaria, tortuosa, bela. E bem íngreme para este fumador. Ao cimo dessas "escadas do Barredo", usufruindo a vista perguntei se aquilo era costume, se levavam todos os visitantes e a mole turista por aquele morro acima. Que "não", disse-me, que também não subia aquilo há décadas. Ri-me num "fui praxado". E continuámos a calcorrear a cidade, ainda que eu assim passado a trôpego. Nisso encontrei loja de "souvenirs" para turistas, aquelas das camisolas do Cristiano Ronaldo e dos Galos de Barcelos. Entrei e, para riso espantado da minha companhia, perguntei se tinham t-shirts com o obrigatório dístico "Eu subi as escadas do Barredo". A vendedora, dona de sotaque e tudo, nunca ouvira falar, nem de tal t-shirt nem da própria escadaria. Sorri-me, nisso até anunciando uma veterania, vera minha condição de portuense, mulato portuense-transmontano a bem dizer ...

Passado algum tempo a cicerone manda-me esta t-shirt, de sua autoria (desenho e estampagem). Um exemplar único que aqui mostro todo ufano. A sonhá-la o meu contributo, bem menor, para a cidade. E também minha reclamação da condição portuense.

publicado às 17:39

X

por jpt, em 15.08.15

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Hoje mesmo, sábado, cruzarei o Tejo na via do sul, buscando este "O Sol da Caparica", festival musical. Coisas de ser pai, em função de acompanhamento (escolta, se se quiser), a aproveitar, sôfrego, estes últimos tempos enquanto a mariposa não voa para o definitivamente longínquo. Tremo, um pouco, com o que acontecerá, com o que me acontecerá, pois o último festival de Verão a que fui foi a Festa de Avante, ali pelos meados dos 1980s, pouco após os meus exactos 20 anos. Fora lá desde o início, em 1976, pois o camarada Pimentel - apesar das suas suspeitas quando ao desvio de direita "eurocomunista" de Berlinguer - tal como o de Carrillo e, também, também ..., de Marchais -, acompanhara-me na FIL diante dos Area, os daquela hendrixiana "Internacional", e, no ano seguinte, deixara-me assistir a Eugenio Finardi, aí já ombreando com os míticos Fairport Convenction. 

Naqueles tempos a Festa do Avante conjugava gerações, e nos anos seguintes a gente, já livre da tutela paternal, aterrava ali a beber durante três dias (e a fumar que se fartava, vá lá, que também era verdade), a "camaradar" entre nós e com os mais velhos dali, os camaradas mesmo, aqueles voluntários dos pavilhões regionais a rirem-se dos nossos efusivos "camarada" e nisso a serem camaradas, no servirem/ajudarem às cervejas e nos comes, estes mesmo para nos manterem em pé, e mesmo assim nós por vezes a desconseguirmos, que as noites seguiam já longas... 

Nisso nós, e naqueles tempos tão diversos dos de agora, via pavilhões do mundo inteiro (o comunista, claro, ali propagandeado com tantas maravilhas) e do resto do país, nestes com os petiscos locais, jogava-se xadrez com os macro-grandes mestres soviéticos e ouviam-se inúmeros músicos de todos os lados, desde os desconhecidos, e alguns que músicos!!!, e os Dexys Midnight Runners (que concertão), aquele Chico Buarque (no apogeu!!, ainda que trémulo por questões lá dele, biográficas), o Manu Dibango (Manu Dibango em Lisboa naquele tempo? tão raro que me obrigou a voltar àquele Festa, já anos depois de me ter recusado a ir), o rock celta então em voga, proto-etnomusic essa que veio a ser dita world, o Ivan Lins provavelmente no melhor concerto da sua carreira (com a belíssima mulher de então, uma loura Lucinha a alumiar Lisboa), Jorge Pardo, o fantástico "corno" de Paco de Lucia, num pavilhão menor numa actuação inesquecível da qual nada recordo, Makeba sem eu saber quem era Makeba, o gigante Luis Gonzaga diante de uma audiência que não o sabia ouvir, Charlie Haden a enfrentar um público estupefacto e também Max Roach, e tantos outros, ali todos os anos polvilhados pelo discurso quase final do camarada secretário-geral, o grande Cunhal. 

Foi mesmo isso, este, que me acabou ali. Pois, já cruzados os 20 anos, deu-me a azia, enorme, cansado de constatar que nenhum Sérgio Godinho, Carlos do Carmo ou Vitorino, sempre enfatuados - e ainda hoje assim seguem - com o slogan da liberdade na boca, como se dela fossem legitimados porta-vozes, dedicava alguma canção, pequena que fosse, àquele Sakharov então sob custódia, e das duras, que ninguém dos grupos de música popular ou mesmo do rock português havia lido Soljenítsin e ali o invocava, de que nem os Rão Kyao ou Telectu se lembravam do Solidariedade ou da Carta 77, que nenhum daqueles cantautores flausinos se lembrava da Albânia, de Angola, da Roménia quando cantarolavam em nome dos perseguidos na América Latina - então devastada por militares fascistas. E que o Ary dos Santos, poeta histriónico gritador de poemas diante de milhares, nunca lembrava os homossexuais perseguidos (e de que maneira) nos países que eles tanto promoviam. 

Um dia - sei lá quando, mas já depois dos The Clash no Dramático de Cascais -, esperava por um qualquer grande nome, desses do concerto de encerramento após o comício do camarada Secretário-Geral, Cunhal ele mesmo, aquela apoteose ("cultural" dirão os de agora) final. Antes da arenga, e tal como todos os anos, lá se levantou a multidão a cantar o hino (sim, o bacoco "às armas") de punho direito erguido. E eu caí num "que faço eu aqui?!", qual Rimbaud entre os selvagens, ali na Ajuda, e conclui - repito, nos meus vinte anos, no início dos 1980s, bem antes da queda do Muro quando alguns descobriram que afinal..., décadas antes da internet, quando outros descobriram que afinal... - "nunca mais cá venho!" (sim, regressei, a ver o Manu Dibango, uma suspensão episódica dos princípios). 

Pois aqueles gajos, mesmo aquela turba simpática, o povo d'aquém e além-Tejo, eram, e mesmo sem o saberem, pobre gente alienada (como dissera o tal Marx), e nisso o inimigo. Vil. Segui para outros concertos, paragens, convívios. Pois a "cultura" - e os arautos da "liberdade" - não moravam ali.

Volto agora à turba, decerto que para um canto do olho (e quão apaixonado!) na filha, outro no palco. E vou triste, pois sigo, reparo hoje, desarvorado, nem uma t-shirt dos Xutos tenho, e é dia deles. Irei assim quase nu. E comportando-me, que sei ser vedada à paternidade os excessos naturais diante do obrigatório, do obrigatório apenas para mim, os "meus", talvez coisa de geração. Irei pois como se pai mas já hoje preparo os antebraços para o mítico, cultual, "X", que se o punho nunca ergui aos antebraços ainda o farei, cultuando esses que ouvi quando tocavam com uns tais de "minas e armadilhas", que terei feito no mítico 31 de Julho no Rock Rendez-Vous, a gravação de um "live" que nunca existiu, há mais de 30 anos, isso porque véspera do "1 de Agosto", dia de "sacola às costas, cantante na mão", e que fiz, ali quase-só, que só o grande Hernâni me acompanhava naquele mar de gente espantada, em Maputo em 1999 e nunca mais, pois que nunca mais os vi. Vou, cultuar, agora pai mas amanhã filho, homem, para gritar "Contra tudo lutas. Contra tudo falhas. Todas as tuas explosões. Redundam em silêncio", o verso da música portuguesa .... E quem o segue, ao verso, ao resto, ao destino, é "quem já nada teme".

Porque, afinal, a tal liberdade é isto, se calhar só isto, o amarfanhado jogo dos riffs. E da desesperança, mesmo que mitigada .., isso do "a vida é sempre a perder" mesmo sabendo que nenhum de nós é "um caso isolado", nem o "único a olhar o céu", porque "quando as nuvens partirem ... vais(vamos) ver o sol brilhará" ...

 

XXXX

 

publicado às 03:30

Badjias de bacalhau

por jpt, em 07.08.15

 

 

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Badjias de bacalhau, gastronomia típica portuguesa; almoço em Lisboa, Julho de 2015 com colegas-amigos Sandra e Elísio, e filha Carolina. Da série "Lisboa é maningue nice" ...

publicado às 18:00

Condenado

por jpt, em 04.08.15

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Há dias aqui narrei o meu triste episódio com a PSP. Fui então detido, sob acusação de injúrias à autoridade. O julgamento decorreu ontem. O auto de acusação era o que era, pejado de criações. Ontem as duas testemunhas de acusação repetiram-nas e uma delas acrescentou-lhes mais algumas. O tribunal considerou provado todo o conteúdo dessas acusações. E condenou-me a uma pena, uma multa que ultrapassa as minhas actuais possibilidades mensais.

 

Amigos dizem-me que "até foi uma multa leve" para o que é costume em casos semelhantes. E aconselham-me a não apresentar recurso: provocar-me-ia despesas alargadas e é praticamente certo que não teria efeitos positivos.

 

Fica-me o amargo da impotência. E ainda o muito mais amargo do desligamento.

 

publicado às 18:10

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(paragem de autocarro Carris, da mítica linha 21 [Rossio-Av. de Berlim], início 1980s) 

 

O meu postal anterior ("Algemado") ocasionou grande trânsito, inusitado, no blog e inúmeras mensagens de simpatia, as quais muito agradeço, a matizarem o estado (ainda mais) aturdido em que vegetei nos últimos dias. Algumas delas muito iradas, polvilhadas de receios até escatológicos, induzindo do que narrei o advento de um estado policial, o fenecer das liberdades. Caramba (oops, deixem-me explicitar que "caramba" não é "caralho" ...), não exageremos, vivemos em democracia, este cinzento sistema sempre vulnerável a alguns desmandos institucionais e a desvarios nossos, os populares. Nisso o melhor de todos. E as coisas já foram muito piores e vão sendo cada vez melhores, não linearmente como imaginaram alguns mais metafísicos mas firmemente. Pelo menos por enquanto.

 

Como o acontecido decorreu "à sombra" da mítica paragem acima retratada aqui deixo, a este propósito, uma canção até hino qu'a gente destas redondezas ouvia "nos tempos". Tão outros "tempos", que convém lembrar para percebermos que isto não vai assim tão péssimo. A ver se acalmamos o fel radical. E alguma desesperança que vai brotando, acima de tudo devido a isto da idade crescente.

 

 

 

 

 

"Take It As It Comes"

Time to live
Time to lie
Time to laugh
Time to die

Takes it easy, baby
Take it as it comes
Don't move too fast
And you want your love to last
Oh, you've been movin' much too fast

Time to walk
Time to run
Time to aim your arrows
At the sun

Takes it easy, baby
Take it as it comes
Don't move too fast
And you want your love to last
Oh, you've been movin' much too fast

Go real slow
You like it more and more
Take it as it comes
Specialize in havin' fun

Takes it easy, baby
Take it as it comes
Don't move too fast
And you want your love to last
Oh, you've been movin' much too fast
Movin' much too fast
Movin' much too fast

publicado às 09:37

Algemado

por jpt, em 25.07.15

 

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Esta semana, num meio da tarde, foi assim que fui detido e algemado à porta de casa. Algo profundamente humilhante, o mais humilhante que me aconteceu na vida, uma situação para a qual não posso simular qualquer "panache". Pois não ocasionada numa  reclamação pública, em defesa de causa ecológica, cívica, religiosa, uma indignação política, alguma militância, algo que me servisse retoricamente para doirar o ocorrido. Apenas uma minudência de trânsito: o amigo que me (nos) transportava reentrara no carro para melhor o estacionar, fizera uma breve marcha-atrás distraidamente sem cinto de segurança. Seguiu-se um longo vasculhar. Os dois amigos, moçambicanos, que nos acompanhavam espantavam-se num "estes são piores do que os nossos polícias", e sabemos como são complexas as actuais relações da PRM com os automobilistas. Ao fim de um quarto de hora, e face ao olhar desalentado do nosso condutor, reaproximei-me da zona para um mero relativo ombrear, quiçá a partilha de um cigarro. Seguiu-se um surpreendente festival de pesporrência verbal e corporal, uma atitude policial totalmente descalibrada face à situação, surpreendendo para não dizer que afligindo os vizinhos que ali passavam.

Fui identificado. Quando, finalmente, me foram devolvidos os documentos confirmei a esquadra a que pertencia aquela equipa e informei que iria apresentar queixa. E disse, indignado com tudo aquilo, em particular com aquela caricatura de furriel miliciano aos gritos com um pobre instruendo em paradas do antigamente, "que isto é do caraças!". De imediato fui detido, algemado e conduzido à esquadra. Onde fiquei algemado a um banco durante três horas. Ao fim de duas horas, a mão direita já dormente lá me realgemaram a esquerda. Estando aberta a porta do gabinete do graduado de serviço ouvi que o objectivo inicial era uma acusação de injúrias e de resistência à autoridade. Mas alguém, porventura o próprio graduado de serviço, disse que para uma acusação de resistência eu deveria ter sido detido noutro momento. E assim apenas restou a acusação de injúrias,  a qual afirma que os "mandei para o caralho" e que repeti "isto é sempre a mesma merda".

Algum tempo depois assinei o auto, após me ter sido afiançado que isso não implicaria a minha anuência com o seu conteúdo. Fui então desalgemado. Também então as vozes iradas e tonitruantes apodando-me de "sô José" se desenrugaram e baixaram passando eu a "sô Teixeira". De seguida outros dois agentes, um dos quais graduado, levaram-me a Alcântara para o que apelidaram de "resenha", julgava eu que um resumo das ocorrências. Mas não é o caso, trata-se da identificação criminal, as célebres fotos cara e perfil, tão simbólicas, as totais impressões digitais e até a procura de tatuagens. Algo a que nos submetemos por "livre e espontânea vontade" como me perguntou o agente ali encarregado antes de proceder ao seu trabalho. Confesso que fiquei estupefacto, recusando espontaneamente pois ali coagido. Mas logo, e porque estes três agentes me tratavam com total urbanidade, quase a roçar a simpatia, acedi, num "faça lá o seu trabalho" muito desalentado. E assim fiquei com ficha criminal.

No dia seguinte fui a tribunal. Um juiz assoberbado de trabalho, dadas as férias judiciais, propôs o seu adiamento para daqui a algumas semanas. Nestes dias alguns amigos juristas avisam-me, muito dificilmente escaparei a uma qualquer pena. E ao cadastro subsequente.

Do que penso sobre as balizas da acção policial já aqui botei, dedicando-me então a situações liminares (repudiando os excessos críticos à polícia; repudiando os seus excessos). Não pactuo com os seus ocasionais desregramentos mas também não com as posições anti-institucionalistas, quantas vezes resquícios adolescentes. Como tal nada me move contra o necessário policiamento nem contra os seus agentes. Com alguns dos quais trabalhei ao longo da vida, estabeleci amizade e até partilhei casa. Cresci nos Olivais, exactamente nesta rua onde agora fui detido, esse "melting mot", o caldeirão sociológico do Estado Novo tardio, naqueles anos 70s e 80s prenhes de grupos adolescentes, pequena criminalidade (e não só) e tráfico e consumo de drogas ilegais, cruzei a boémia lisboeta do Cais do Sodré e Bairro Alto naqueles anos 80s. Passei duas décadas em Moçambique em constante contacto com os agentes, tantos deles em demanda de gratificações extra que lhe componham os paupérrimos salários, sem que alguma vez tenha corrompido um agente. E em nenhum lugar, em nenhuma idade, tive problemas com a polícia. Certo que tudo isso, todo este passado, não inibe que me possa eu descontrolar, "borregar". Mas com toda a certeza que me deveria dar (e dá) modos de saber sopesar o que enfrento.

Ficarei agora, aos 51 anos, depois de ser algemado diante de vizinhos que me conhecem desde miúdo, a cumprir alguma pena. Cadastrado. Decerto que por responsabilidade de dois agentes que se relacionam com pacatos cidadãos sob uma bitola desregulada. Mas também, e fundamentalmente, porque algo de errado me está a habitar, a fazer-me incompreender, fraquejar e errar. Talvez, talvez, o que alguns dos amigos de Maputo agora aqui de passagem, e têm sido vários, me dizem ao tomarem conhecimento do estapafúrdio acontecimento, isso do carinhoso "anda-te embora, já não és daqui". Mas ... sair daqui cadastrado? Para onde? A deixar-me assim num desalento (mais) imobilizador.

publicado às 10:03

(N)Uma feijoada de lulas

por jpt, em 15.07.15

 

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É o 14 de Julho mas não francesamos. De manhã estupefacto-me e iro-me com mais uma dolorosa tenaz burocrática, a verdadeira malevolência em formato impessoal. E logo decido que é a última vez, desisto aqui. Sigo para almoço, com duas amigas já de longa data, coisas de partilharmos Maputo. Uma por lá, agora há já década e meia, outra já cá depois de décadas fora do país. É ela que nos presenteia com uma opípara feijoada de lulas, saborosíssima. Eu voraz, elas senhoras. Falamos, nós ambos, os por cá, esmagados. A nossa amiga dizendo-nos talvez exagerados, propondo-nos outro olhar. Nós a lembrar-nos do quantas vezes teremos dito isso ao longo dos anos a outros então já torna-viagem. Mas agora a resmungarmos minudências, incapacitados. São estas que mais me ferem, a lembrar-me dos quantos dos nossos serões d'antes, passados a resmungarmos e analisarmos, com paixão e veemência, as majorências, aquilo do mundo. Mas agora assim, nós tão mais menos. Já não sei se sou eu se a dona da casa que nos resume, mas é como sendo nós um coro: "Este país não é para velhos!", e já o somos. Como três pratos da feijoada de lulas. Depois, um pouco depois, bebo uma água das pedras, velho gasto que estou. E fico a matutar, o quanto preciso eu de passar a beber "soda water"´. Não há outra via.

publicado às 00:54

Colonial?

por jpt, em 26.06.15

 

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É um colóquio académico, coisa internacional aqui em Lisboa. Nada tenho a dizer mas vou visitar, escutar, há até um fim de manhã dedicada a textos sobre a zona de língua macua, antropólogos estrangeiros a falarem, de meus colegas patrícios nenhum na audiência, da disciplina apenas um, eu mesmo. Sorrio, sarcástico: enredados nas questões das "masculinidades", dos transgendeirismos ou destes folclorismos d'agora, desses a fazerem-se ao património unesco, nenhum saiu do gabinete para ir ouvir sobre uma zona onde vivem mais pessoas do que neste Portugal, e numa azáfama de permanências e transformações. Que o mundo é grande como o caraças sabe-o qualquer aldeão que se atreva a ir ver o mar, faltam é aldeões atrevidos lá pelas academias ...

A sala coloquial está composta, gente de outras disciplinas. Almoço na cantina da universidade, aqueles três euros e tal a que me reduziu este todo desajeito em vida. Uma colega, jovem estrangeira aqui vivendo, simpática e competente, sei-o porque a li e até já ouvi, vinda de outras disciplinas ("prima", posso dizer) senta-se à minha frente, nestes breves diálogos tão típicos destes eventos.

Com afabilidade diz-me que me vai lendo, os textos longos na minha conta na rede Academia.edu, e também este palrar no ma-schamba. Agradeço-lhe, até encabulado. E pergunta-me se sou de Moçambique. Eu esclareço-a, que sou português. Ela riposta, que o sabe. Mas não serei eu lá nascido, ou a minha família de lá? Se somos retornados?, sumarizo-lhe. Que não, não sou, nunca lá estive antes de 1994, que os meus pouco por lá passaram e em nada moldaram o "meu" Moçambique, mais do que tudo porque nunca foi verdadeiro assunto lá em casa. Mas, interrogo-a, porque me pergunta isso? De onde lhe vem a dúvida?

Sorri, até bonitamente, com elegância, avançando que ao ler-me lhe parece que eu sou de lá, "há qualquer coisa" no que digo e escrevo, talvez vinda daqueles tempos. Sou eu agora que sorrio, repetindo a negação. Percebendo-a mas deixando correr, o tom dela é afável, não há necessidade de discutir, ainda para mais com uma jovem senhora. Mas sei-lhe, é visível, o perfil. O ideológico, frise-se. O desta esquerda conceptual, enredada. Percebo-a, está-me a perguntar se não serei eu um "colonial". Não tanto um "colono" e nem mesmo um "colonialista", que tudo isto que me diz vem com até amizade. Mas, vá lá, não serei eu um "colonial"?

Apetece-me responder, claro, mas deixo cair. Deixo passar o momento ainda que logo ali saiba como lhe explicar a coisa. Deixo passar uns meses. E venho esclarecê-la, com o que então me apeteceu dizer. Apelando ao Clint, claro, o Eastwood, o tal tipo de direita. Este de "White Hunter, Black Heart", um filme de 1990 (um ano após a queda do muro comunista, já agora).

O filme é uma eulogia, sem dúvidas, de John Huston, a propósito do seu "Rainha Africana" (com o herói Bogart e a deusa Hepburn). Para além das peripécias da realização daquele filme em África, do retrato do idiossincrático realizador e sua relação com o mundo de Hollywood, centra-se na sua paixão pela caça: a personagem hustoniana quer matar um elefante "porque é um pecado" e ele o pode fazer, tem para isso poder, uma cena liminar, excelente.

Mas há muito mais, numa sublime aparente contradição, o húmus do filme. O avatar de Huston é um democrata, antifascista (retratam-se os anos 1940s). Insulta uma colona inglesa anti-semita (a cena acima), provoca uma desigual luta com um colono racista inglês, por isso sendo espancado - e explicita a semelhança das atitudes, as do racismo nazi e do colono. É, como a minha prezada colega o é dezenas anos depois, um democrata, de "esquerda" ("liberal", dir-se-ia nos tempos lá na América), certo que em tom blasé mas basto empenhado. Depois vai à caça, cria uma ligação com o seu guia. Que conduz, patrão paternalista, à morte. É no fim do filme que Eastwood explicita o título, os tamboristas tamborilando "caçador branco, coração preto". Apesar das boas causas, daquilo de "esquerda", da atitude (e do álcool), da aparente generosidade e solidariedade.

É talvez por isso que nunca Clint entra nas notas de rodapé dos "papers" sobre a "colonialidade" ou sobre o "colonialismo". E por isso que a "esquerda" sempre tâo solidária o diz de "direita". E, também, por isso que um tipo que lhe vê os filmes tem qualquer coisa de  ... "colonial".

publicado às 23:09

Camarada

por jpt, em 19.06.15

paulo gentil.jpg

 

(Paulo Gentil; fotografia de Sérgio Santimano)

 

 

Esta é uma das canções da minha vida. Em tempos recuados também, mas não desde há décadas, por ser um carinhoso cantar desta partilha companheira de um charro, da procurada leveza amigada, isso mesmo que um dia fomos cantar à Aula Magna lisboeta, quando o Sérgio Godinho fora preso no Brasil, ainda os tempos daquela ditadura, por razões de posse de umas gramas de erva. Mas já então, e agora ainda mais, mesmo mesmo nada disso pois muito mais, que a canção subia a hino, como o foi, por dizer isto " É que hoje fiz um amigo / E coisa mais preciosa no mundo não há (...) / Guardei um amigo / Que é coisa que vale milhões", e era e é mais do que o suficiente para a fazer este isso tão grande ...

 

Agora as décadas passaram, chegou a idade e já não é o meu tempo de fazer amigos. Mas sim, como hoje, o de os perder, partidos para sempre,  e eu a cantar embargado "É que hoje perdi um amigo / E coisa mais preciosa no mundo não há (...) / que é coisa que vale milhões". Avançou o Paulinho, o meu querido Paulinho, tinha que ser. E assim, como já o disse, sentindo-o muito, a savana está a ficar desarborizada, sem sombras e sem refúgios. E um homem desabrigado, enquanto aqui vai ficando.

 

Conheci-o já depois daqueles tempos épicos, "os anos de chumbo" que narram em Moçambique, doirados para os homens que o são por mais duros e injustos que fossem, esses tempos e até aqueles homens. Talvez melhor dizendo, tempos doirando os homens, coisa complexa para quem não conhece o país e se apresta em juízos, que nada mais são do que posconceitos, assim falhos.

 

Apanhei-o, apanhámo-nos, depois, já naquela tão aparente modorra do Maputo da paz. As nossas mulheres mui amigas, as nossas filhas crescendo juntas (e como tanto as amamos!, pais velhotes ...), um punhado de amigos em conjunto, este a desvanecer-se tão depresssa, e como dói isto do Kok e do Jorginho também já terem avançado, e mais para mim, não tanto para ele, o Luís, esse que me devastou, me mudou para tão pior, quando foi e eu não consegui estar. E o nosso Sporting, coisa sempre jocosa, mais o resto tudo. Pretextos, e ainda bem que assim foi, para a gente tantas vezes se sentar juntos, partilhando. O jarro de vinho, com alguma parcimónia, sempre o notei, mais um charro ou outro, da parte dele, eu mais naquelas apneias dos uísques e assins. E à nossa volta cada um ao seu ritmo.

 

E nisto eu a aprender Moçambique. Ele o mais moçambicano que apanhei, um profundo zambeziano do zumbo ao índico, do maputo ao rovuma, apaixonado pelo seu país. Pois um conhecedor, amante. Avançasse eu, ou outrem, para a distante província, para qualquer recôndito distrito, havia sempre alguém que ele conhecia, um contacto a fazer, a facilitar as dificeis condições, ainda para mais porque, e quantas vezes mo aconteceu, "és amigo do Paulo Gentil? então estás em casa, do que precisas?", seja lá onde fosse, fosse lá quem fosse ... Pois nele havia um conhecimento denso do país feito saber da história, aquela dos ditos "chuabos", da escola de Chimoio, dos tempos da independência, da guerra civil, na qual andou mesmo mesmo como "camarada comissário político" (como lhe respondia eu ao "professor" nas nossas chamadas telefónicas), e do daquilo do depois, do mundo "ongs", do desenvolvimento, um conhecimento que era o das pessoas que a fizeram, à tal história, e que a estão a fazer, algo que nós, antropólogos, chamamos etnográfico.

 

Um saber feito de memória prodigiosa mas acima de tudo de sabedoria, e não estou a ser redundante. De respeito e, acima de tudo, de um enorme interesse por quem o rodeava. Mais ainda de louvar pois em homem nada plácido, um gajo de irritações, mau-feitio, como o deve ser homem que o é, homem de feitio. Mas homem, e isso sabiam, sabiamo-lo, nós os outros. Por isso mesmo, pelo apreço e cuidado por todos os com quem ombreava, algo a que também se pode chamar só respeito ou mesmo amor, o digo, o sei, o mais moçambicano, o maior moçambicano, que cruzei. E assim, só por assim o ser, ainda que sarcástico, irónico, mesmo até malandro, sendo, e por todos sabido e vivido, homem de amigos, tantos amigos, eu apenas um deles, mas assim a sentir-me tão especial, decerto como todos os outros. Homem ... como tão poucos.

 

Apanhei-o agora no fim, aqui na Lisboa dele tão longínqua. Chegado cansado, pois este mesmo fim, mas o mesmo trato, nada rasurado, o mesmo humor, o mesmo afã do mundo. E conto-o para que os camaradas de Maputo o saibam, os possam assim acompanhar, a alguns destes seus últimos passos. Fui ter com ele ao hospital, aos Capuchos, à primeira consulta, cheguei e aperto de mão pois nada de abraços (e nem o abracei, caralho ...). O médico, um tipo chamado Brotas, muito porreiro, a dizer que entrássemos juntos na consulta, e a gente a negar-se, eu num "não é preciso, só estou a acompanhar" e à terceira insistência do médico, obviamente preocupado, o Paulo logo letal "Zé, o tipo deve julgar que a gente é um casal", coisa dos tempos d'agora-aqui, e a gente a rir-se, sem maldade, apenas de nós próprios, e mais dele próprio, agora-assim, foda-se que estava a morrer. Que coragem!

 

Avançou-me até à Póvoa de Santo Adrião, onde a família tinha casa, arrabalde lisboeta que eu desconhecia. Logo ao melhor restaurante da zona, o "Floresta", a fazer amizade com os empregados, eles seduzidos. A comer nada mas com todo o prazer. Eu a beber a minha angústia. Depois, no segundo dia que lá fui parei, sozinho, no quiosque (a barraca, como se diz na terra) da rua dele, a comprar tabaco, e a miúda "então, o seu amigo hoje não vem?", e ele já era do bairro, gostado e precisado! E eu, que aqui vivo, e tantos outros, e ninguém nos liga ...

 

Dias depois outra consulta, apenas para mais delongas para um homem já sem tempo. No fim perguntei-lhe "camarada comissário político e agora? onde queres ir?", e ele a querer sair dali, daquela Póvoa de Santo Adrião, até à Lisboa ali depois dos montes. "Feira do Livro" disse-me. Avisei-o que era um subir e descer cansativo  para ele e, raisparta, de que vale lá ir, nós sem dinheiro, para além de que aquilo para mim é só comprar livros para a estante, pois tantos já em casa sem serem lidos, e posso-lhos emprestadar, é só ele vir buscar. E ele a rir-se "gosto disso!, é isso mesmo, quero comprar livros para a estante", assim a pensar o futuro, e eu a esmaecer diante de tanta força. Mas ainda era cedo, meio da manhã, a Feira ainda fechada. Fomos almoçar, "talvez ao rio, não?" propus, mas logo lhe dizendo "que nos interessa o Tejo a nós, vindos do Índico?" E assim fomos ao mercado de Alvalade, uma espécie do mercado do peixe lá de Maputo onde acabámos no restaurante local. Eu a presumir um peixinho grelhado, adequado julguei eu. Mas nada disso, "uma cataplana de gambas e peixe" escolheu e assim foi, ele a picar algo com o prazer da vida e eu a alambuzar-me, enquanto lhe prometia metade do frasco de piripiri que o Elísio me trouxe agora de Maputo ...

 

Comemos e falámos. Do futuro. Um pouco disto de Nyusi mas muito mais do como estamos, que vamos fazer, nós-próprios. Ele preocupado comigo, com a minha família "Zé ....!!!" a obrigar-me a pensar, "que estás a fazer?". E eu preocupado, "como estás de reforma?" "de dinheiro?", como "vai ser o regresso?", a esperança quase desesperada a fazer-me ainda mais imbecil. Ele a exigir pagar naquele dia, e assim foi. E a navegar esse futuro que aí vem. Ambos sem reformas, sem bens alguns, sem emprego, sem nada disso. Camaradas manos. "Estamos fodidos, camarada!!" disse-lhe. E ele, quase a morrer, a rir-se devagar, num concordante "estamos!". Pois o Paulo, depois da adesão, dos 40 anos de militância, da guerra feita, e depois de tanto distrito calcorreado, de tanta ong trabalhada, daquilo do desenvolvimento, de tanto contacto, de tanta amizade, nada acumulou. Nada quis. Nada apropriou, nada aproveitou. A sua maneira de andar direito, erecto. De amar, solidário. Orgulhoso.

 

Pois todo se deu, assim fruindo. Todo conheceu, assim fruindo.

 

E eu, agora, hoje, não o vou comparar com os outros. Pois nem o merecem. Fico-me a chorá-lo. Homem a chorar a falta que ele me vai fazer.

publicado às 03:25

A antropologia e a política

por jpt, em 05.05.15

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Nos inícios dos 1980s fui estudar Antropologia, fugido da escola de direito de Lisboa (onde, já agora, apanhei António Costa e José Apolinário a falsificarem as nossas votações, seus colegas alunos, preparem-se para a imundície que aí vem). Na época, no ISCTE, a gente estudava ano e meio em comum com Sociologia (talvez seja isso a origem da perversa demência anti-antropológica que a maçonaria da Sociologia veio patenteando nestas décadas portuguesas). Depois seguíamos mesmo o nosso caminho, algo trôpego. Não aprendi muito ali, mea maxima culpa, burguesote com carro e dinheiro no bolso, mergulhado na "lisboetana" boémia, acampada no Bairro Alto. Mas também um pouco, também e repito-o, pelo que ali se recebia. Era a era dos leitores militantes de Lévi-Strauss, um verdadeiro génio que afinal pouco nos conduziu para o depois, exactamente como o infecundos serão os cultores posteriores desse imaginativo Foucault que veio a assombrar este futuro (apesar de já então Baudrillard e Merquior terem pontapeado o seu delírio pancrático). E, de outro lado, de radicais marxistas surdos ao d'então monumental peido-mestre da Querida Teoria feita "socialismo real". Mas tive bons professores, e é com muito prazer que reclamo ter sido ensinado por João Leal (o tipo que melhor analisa e escreve sobre o "Portugal" que em Portugal se imagina, homem demasiado discreto nesta festividade actual) e João Pina Cabral, entre alguns outros. Não foi uma perda de tempo, pois mesmo com estes desvios ali conheci a obra de dois iluminadores, Leach e Dumézil, que nunca teria lido de outra forma. Não me importa se estes me foram ou são importantes ou úteis na vida: fizeram-me (este) homem.

 

Mas, e resumindo, ali aprendi pouco. Pois o fundamental, o núcleo, radicava na transmissão dessa angústia adversa ao etnocentrismo, hoje mais conhecido (e reduzido) por eurocentrismo - isso que ainda ensinamos na primeira aula da "introdução à antropologia". Uma mancha, mácula, peçonha, culpa, que nos ficava (e fica) qual disfunção eréctil para o futuro. Transmitida em palavrosos requebros e maçudos manuais. Acontecia que nada disso me era novo. Eu vinha dos Olivais, subúrbio alfobre, (coisa que contei aqui). Assim aportara à universidade, fruto daquela caldeirada sociológica (depois vieram a chamar a isso "multiculturalismo", quando tiveram de juntar "raça" a "classe") de bairro suburbano. Eu algo ligeiro, pois sempre escapando-me ao injectar-me, mas carregado de rock e devaneios, esses que afinal eram refutações sem que o soubesse. E assim todo o palavroso anti-"etnocentrismo", todas as esquizofrénicas depurações intelectuais, desmaiavam face ao capital que já carregava, à consciência de tudo isso já ter sido cantado, e então para quê lê-lo tanto e tantas vezes? E cantado, gritado, em modo bem mais assertivo, com um barulho que em nada anunciava, nem exigia, o culposo desmaio. Numa breve canção os "The Clash" haviam dito o problema e pronto, tratava-se de seguir em frente. Certo que o onanismo intelectual veio a resmungar - como aceitar "Charlie don't surf", brotado do Apocalypse Now?, obra de um horrível Coppola, malvado e yankee que bombardeara a floresta cenário, e, pior ainda, emanada daquele Conrad, o escritor do império (ler Said, este realmente importante, sobre Conrad é pedir demais aos revolucionários quando funcionários estatais)? 

 

30 anos passaram. Continuo a ouvir colegas, amigos, competentes e argutos, a enfrentarem o real. A quererem criticar o real d'agora. Percebo o problema, isso que nos aparta. Não é ideológico, nem de vínculos a interesses. Mas, e talvez por não terem vindo daqui, do meu bairro, isso de não terem ouvido ouvindo o rock necessário. Por isso vitimizam os compatriotas, ditos sofridos da malvada crise. Sem os verem o que são, como mau público de boa música. Por isso sem os verem como indivíduos, agentes. Pois tudo isto, a tralha que submerge, também isso os "The Clash" (e não só eles ...) haviam anunciado. Em 1981 o grupo, ainda no auge, tocou no Dramático de Cascais. Nos meus dezasseis anos não pude faltar. A gente seguia de comboio do Cais do Sodré e acampava naquela bicha (agora dita "fila") lendária, esperando entrar no pavilhão, horas muitas, devaneios múltiplos. Naquele dia à longa espera sucedeu-se uma patética primeira parte, o agrupamento luso "Taxi", um casting aburdo, ao qual se seguiu a cantora punk "Pearl Harbour" (a namorada do baixista Paul Simonon), e longos intervalos. No meio daquilo tudo, tantas horas passadas, lembro-me de ser acordado, e estou certo que a custo, nos sanitários por um rasta, "man, os Clash vão começar" - um rasta solidário com um new wave num concerto punk, um hino multicultural -, e eu lá fui, cambaleante para as mais primeiras das filas possíveis. De quase nada me lembro do concerto. Apenas de o pular todo. E de gritar incessantemente "lost in the supermarket". Essa que eles não tocaram.

 

Era um puto, suburbano, adolescente. 35 anos depois, quando os intelectuais (e os jornalistas) me abalroam com o coitadismo, a vitimização dos nossos compatriotas (e com "és de direita") só me lembro dos Clash. E dos impropérios que esta gente merece. Mau público para boa música. (as canções estão abaixo)

 

 

Charlie don't surf and we think he should
Charlie don't surf and you know that it ain't no good
Charlie don't surf for his hamburger Momma
Charlie's gonna be a napalm star

Everybody wants to rule the world
Must be something we get from birth
One truth is we never learn
Satellites will make space burn

We've been told to keep the strangers out
We don't like them starting to hang around
We don't like them all over town
Across the world we are going to blow them down

CHORUS

The reign of the super powers must be over
So many armies can't free the earth
Soon the rock will roll over
Africa is choking on their Coca Cola

 

It's a one a way street in a one horse town
One way people starting to brag around
You can laugh, put them down
These one way people gonna blow us down

CHORUS

Charlie don't surf he'll never learn
Charlie don't surf though he's got a gun
Charlie don't surf think that he should
Charlie don't surf we really think he should
Charlie don't surf

Charlie don't surf and we think he should
Charlie don't surf and you know that it ain't no good
Charlie don't surf for his hamburger Momma
Charlie don't surf

 

 

 

 

I'm all lost in the supermarket
I can no longer shop happily
I came in here for that special offer
A guaranteed personality

I wasn't born so much as I fell out
Nobody seemed to notice me
We had a hedge back home in the suburbs
Over which I never could see

I heard the people who lived on the ceiling
Scream and fight most scarily
Hearing that noise was my first ever feeling
That's how it's been all around me

[Chorus]

I'm all tuned in, I see all the programs
I save coupons from packets of tea
I've got my giant hit discotheque album
I empty a bottle and I feel a bit free

The kids in the halls and the pipes in the walls
Make me noises for company
Long distance callers make long distance calls
And the silence makes me lonely

[Chorus]

And it's not hear
It disappear
I'm all lost

publicado às 03:59

Colecção

por jpt, em 23.03.15

luis a.jpeg

 

(Fotografia de Luís Abélard) 

 

 

De vez em quando faço colecções de textos que meti no ma-schamba e coloco-as na minha conta na rede Academia.edu, sempre na crença que para alguns isso venha a ser interessante, em particular à minha filha quando crescer. Agora fiz uma outra colecção. Basta clicar neste título ma-schamba 2 (2013-2015) e ficam disponíveis cerca de uma centena de textos destes dois últimos anos, acompanhando o meu regresso a Portugal vindo de Moçambique.

 

Para quem nunca reparou e se possa interessar, deixo referência às outras colecções que antes já lá colocara:

- Ao Balcão da Cantina (crónicas de viagem e de paragem)

- A Oeste do Canal (textos sobre Moçambique);

- ma-schamba (textos em blog).

 

publicado às 14:32

Cheias a norte

por jpt, em 13.01.15

mocuba.jpg

 (Ponte sobre o Licungo, em Mocuba, desconheço a autoria da foto).

 

Cheias a norte, vejo várias fotografias mostrando efeitos da ira das águas. Aqui o estado actual da ponte de Mocuba que eu conheci assim, 

 

mocuba2.jpeg

 

e sobre a qual, em tempos, botei um postal

 

Isto das cheias a norte lembra-me sempre, com nostalgia, de um trabalho que fiz há muito tempo exactamente durante umas cheias. Há mais de dez anos botei no blog um texto sobre isso, e guardei-o aqui, junto com outros. Repito-o agora: 

 

Nas cheias do Zambeze

 

De Quelimane ao rio Chire quase vai um dia. Dois camiões atolados há já 15 horas vedam a estrada, rodeados de uma meia dúzia que tapa todas as irreverentes opções. A surpresa de aí encontrar um mui recente ministro português, simpatia enérgica a gerar o desentupimento. No contraste com a minha displicência de Rothmans feita sinto os determinismos psicológicos. Há quem tenha o dom do poder e outros, como eu, olhamo-lo, quase sempre de viés. Esperando que milho e madeira desçam das viaturas converso com um indo-descendente, dez anos comerciando entre a Moita, o Laranjeiro e a Costa da Caparica. Ao “porque raio voltaste?” solta um “que sentido tem aquela correria?”: não há-de ser esse cofió a separar-nos, Adam! Algo envergonhado conta-me que, farto da espera, pagou 400 mil meticais para se descarregarem os camiões. E estes, logo que menos pesados metem a primeira velocidade e saem calmamente das suas covas. Rio-me de mim, qual psicologia, qual poder do Grande Homem Branco: “É a economia, estúpido!”.

 

Um padre na estrada, desses de décadas de mandioca e feijão com bicho, guerras, água morna, falhanços, malárias, que fazem este ateu sentir-se um pouco mais pequeno do que já é. Irritado, o velho! Narra o episódio do padre italiano que morreu há dias, arrastado nas cheias ao tentar levar doentes ao hospital. E do seu colega partindo em busca do corpo, irregulares caminhos, margens lamacentas, atolado vezes sem conta, o cansaço sem desespero da gente de fé. E do seu regresso, ainda sem sucesso, onde a polícia o multa em um milhão de meticais, que isso de nas buscas ter caído a chapa da matrícula…até pode ser verdade mas não apaga a ilegalidade.Determinismos culturais? Tradição, culto dos mortos, ritos prescritivos, enterro lá no lugar dos antepassados? Que idealismo, “é a economia, estúpido!”.

 

 

Perto de onde era o batelão do Chire, pequena travessia por roldanas, é agora uma infindável planície de água, bordejando a aldeia Pinda. As primeiras casas distam 50 metros planos do rio. Felicidade pela inesperada presença de Ventura, o meu motorista, pastor da igreja evangélica que aí professam. Numa pobre capela de pau-e-pique uma breve e alegre oração conjunta. Faço um apelo a que partam para zonas mais altas, pois as chuvas a oeste e as descargas vão aumentar. Já o administrador o disse mas não vislumbram razão para tal, nas cheias de 1978 as águas não ultrapassaram aquela árvore acolá, guardiã da secura a 20 metros da povoação. Empirismo puro, para racionalista aprender! Intercedo junto de Ventura para que os convença. Responde que não o fará, aquela gente não tem tecto noutro sítio e as suas machambas estão ali. Para onde irão?Fatalismo, inconsciência? Mais uma vez, “é a economia, estúpido!”.

 

Para trás ficou Quelimane, onde a beleza das mulheres até magoa. E testemunha, sem essas coisas do genoma, que a mistura das gentes é bonita. Nas esplanadas da cidade vou indagando como vivem as meninas que passam. Perguntas cujo caroço, vejo-o agora, é o sentimento de que dói menos uma mulher menos bela ser prostituta do que uma mais bela. Imoral moralismo! Que não, dizem-me, mesmo sendo ali porto isso não é mais generalizado do que noutros lugares por esse mundo fora. Mas lembram que muita rapariga procura um marido que a tire dali. Lembro o Primeiro Dia de Mafra, com o longínquo aspirante Boieiro aos berros, qual vedeta de Hollywodd, apelando à rusticidade pois os piores classificados iriam parar às ilhas “de onde virão casados”. E o frémito de horror que percorreu o ainda informe pelotão, imaginando o casamento com uma açoriana. É o mesmo, a troca do isolamento geográfico por outros isolamentos. Neste combate à lonjura, “é a estúpida economia” dos afectos, estúpido!

 

Gurué, verde montanhoso na falsa beleza da monocultura. Modernos rumores de futura indústria de capulanas bem nas nascentes do Licungo, todas essas tintas navegando até ao Índico, dando de beber às gentes, colorindo a Província. “É a economia, estúpido!”. Avaria madrugadora, marcho durante horas provando o envelhecimento. Uma moto passa e há-de voltar já liberta do pendura, um miúdo que me transportará para a cidade. À proposta de lhe “pagar o combustível” o jovem extensionista rural de Mocuba ri-se e diz-me “ó seu estúpido, nem tudo é economia”, que um dia o hei-de safar algures. Obrigado Felix dos Santos, pela boleia e pelo alívio.Por todos estes sítios se encontram europeus.

 

Cooperantes, velhos cooperantes, ex-cooperantes, neo-cooperantes. Ali e acolá um comerciante, até um empresário. Tal como no sul toda essa gente vai partilhando cereais destilados e a opinião que a actual cooperação não ajuda o futuro do país, que algo tem de mudar. Estarão eles enganados, tal como os moçambicanos que de o acharem até já estão fartos de doadores? Sem respostas nestas noites distritais, lembro-me do meu pai e trunco-lhe as palavras: “a democracia é o alcatrão e a electricidade!”.Mas vai-se dizer isso, arriscar os empregos de expatriado ou os clientes de dolar no bolso? Deixar andar, “é a economia, estúpido!”.Risonhos, vêm centenas de homens na estrada. Logo procuro saber que se passa e do aglomerado ouço, espantado, “Maharishi”. Desde há alguns meses 1700 jovens meditam 4 horas diárias em troco de 270 mil meticais mensais. Pasmo, que raio, receber para meditar! Resquícios cristãos, a noção de que o transcendente exige pagar ao intermediário com o(s) espírito(s). E porquê assim, porque não o contrário? De facto, “é a economia, estúpido”, como tirar os homens do trabalho sem os compensar, quando vivem no limiar da economia de subsistência? E face aos que ainda agitam uma idílica agricultura tradicional vejam a sua desnaturalização, pois meditar potenciando equilíbrios pressupõe os desiquilíbrios. E talvez possibilite outros sincretismos, renovações, transformações. Por eles, coisas bem locais. Porque a mentalidade, essa “economia, estúpido”, coisas feias e bonitas, agradáveis ou não, está aí omnipresente. É deixá-la ir, e ainda bem que auto-meditada.

 

Tenho que partir, mas a vontade é quedar-me por lá! Fica a esperança no sucesso desta ideia. Repito-me, se aliada ao “alcatrão e electricidade”, parece bem mais promissora que tanto “desenvolvimento” semi-importado.A norte, onde o Zambeze só dá o nome à província, o Alto Molocué, pequena vila dividida por esse rio. Vizinho da pequena ponte o Fotógrafo Soares, “fotografia tipo B.I”. Não resisto, desço as escadas, minto-me de colega e peço para fotografar. O velho fotógrafo, com o caudal em casa, dá-se à imagem junto dos seus. Proponho que saia dali, é visível que as águas vão subir. Calmamente aponta umas frágeis canas, habitual limite do rio, e às quais em breve este retornará pelo que não vê necessidade em partir. Respeito, mudo a conversa, responde-me que o negócio vai normal, mas que não chega para nova casa de tijolo. Ficará acompanhado da família, feita dique moral. De novo, “é a economia, estúpido!”.A casa desabará meia hora depois, a água cobre a ponte. Lembro o padre e, aqui inútil, cruzo-a rumo ao Maputo, à Inês. E à notícia da morte de C. Geffray. Fica este país, agora desprovido de longínquo e magoado saber, mais pobre. Porque nem tudo, estúpido, é economia.

 

(Março 2001)

publicado às 07:40


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