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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Uma muito boa ida a Portugal, a família está muito bem (o que me destorna Atlas) e ainda lá me restam dois punhados de amigos (o que dá alento [ou alma, na linguagem da superstição]). Um breve rescaldo do que encontrei:
A crise está(-me) vasta e não pude comprar livros. Mas vi nas livrarias este vol. I das obras de Bulgákov. Tradução de Nina Guerra e GAF, que continuam a civilizar o país com a tradução dos escritores russos de XIX e XX, antes deles inaceitavelmente intraduzidos. Fiquei invejoso, o contentamento da posse chegará (?) em próxima visita.
As mesmas razões afastaram-me do A Cauda do Escorpião - o Adeus a Moçambique, de Giancarlo Coccia, recente publicação que para mim foi uma novidade. O Herdeiro de Aécio aborda o livro, muito criticamente, minorando o meu lamento.
Toda a gente fala da crise do capitalismo financeiro. Eu ainda resmungo com o industrial. O "indivíduo fruidor", da mescla vigente e dominante entre pós-marxismo e pós-catolicismo, só é quando rodeado de uma miríade de "gadgets" (termo inglês que significa penduricalhos). Mas o material desta produção industrial é mau, supra-perecível, daí que nos esvaímos em constantes actualizações e substituições. A minha máquina, com meia dúzia de anos ("tão antiga?", "vive em África? sabe? ... a humidade, o pó!...") avariou, a reparação tem o custo de uma nova. A máquina do meu pai (que não é Nikon, já agora) é mais velha do que eu e ainda fotografaria, se houvesse rolos. Conclusão: "não há dinheiro não há palhaço", deixo de ter máquina fotográfica. Um dia, quem sabe?, se isto me melhorar, comprarei outra. Que não será Nikon.
Fui lá. Depois falei disso. Como seria de prever arquitectos e amigos de arquitectos defendem o "Arco do Triunfo de Cascais" que Gonçalo Byrne construíu ali na baía. Dizem que "recuperou" e "marcou" e mais não-sei-o-quê. Dizem ainda, e vindo de quem vem é um argumento delicioso, que "os apartamentos são caríssimos e estão todos vendidos". Que jeito dá a mercadocracia em algumas situações. O monstro está acima retratado (clicando ele aumenta), não me aproximei mais. Por mero pavor.
Quinze anos depois voltei ao VilaLisa, mítico local na Mexilhoeira Grande (entre Lagos e Portimão). O meu entusiasmo pela comida reduziu-se muito, entretanto. Mas ali recordei-me glutão. Ainda vale a pena.
A parede que está ali ao fundo é a actual Escola Secundária D. Leonor (Lisboa). O edifício antigo continua, mas cresceu-lhe este gânglio em forma
de paralelepípedo. Ou será tumor? Dizem-me que agora é assim ... que se recuperam as escolas.
Novo governo, crise generalizada. Como durante anos trabalhei em "cooperação" (Ajuda Pública ao Desenvolvimento) pergunto "que vai acontecer à cooperação?", gente nova e abordagens são esperadas. As notícias e as perspectivas são ... uma dor de alma.
A retrospectiva de Pedro Cabrita Reis no Centro Cultural de Belém. Esmagadora.
(Numa sala ao lado uma individual de fotografia, de Alfredo Jaar, "Cem Vezes Nguyen", é uma fraude. Não há um qualquer antropólogo que tenha lido alguma coisa sobre "histórias de vida", sobre representação e isso, que pontapeie o rei-fotógrafo que tão nu se passeia?).
Li jornais (sempre vão sendo mais baratos). O Guia de Futebol 2011-2012 do Record é melhor do que os Cadernos de A Bola.
O jornal i, que quando apareceu tanto prometia, piorou. Não vende, dizem. E perdeu muitos jornalistas. Ainda assim vou comprando. Os amigos, feitos vizinhos, acusam-me de direitista, "servo do grande capital" por ler tal pasquim. Respondo-lhes que o jornal está cheio de textos de bloguistas de esquerda e até de neo-comunistas e velho-comunistas. Não acreditam. É a força dos preconceitos.
Há quase vinte anos o então director do Público afrontou as manifestações dos estudantes invectivando essa mole como "geração rasca", algo que ficou célebre. Não eram apenas os fundos das costas que eram mostrados, eram também os trocadilhos com o nome da então ministra da Educação que serviam como se argumentos políticos. Agora apanho no mesmo jornal um patético texto de Santana Castilho (Publico, 3.8). Castilho, que cheguei a encontrar aqui em finais de 90s, penso que ligado à cooperação com o então ISPU, despeja um incomensurável fel ("eu é que devia ser ministro") e dedica-se a jogos com o nome do agora ministro da Educação. Estará o Público na época dos "colunistas rascas"?
Helena Matos (texto só para assinantes):
"... não tenho qualquer interesse ou simpatia por sociedades secretas ou discretas e numa democracia nem percebo a sua razão de ser. Irrita-me solenemente a presunção dumas pessoas que a si mesmas se definem como homens bons e sobretudo todos aqueles rituais de igreja a fazer de conta que não é igreja, mais os aventais e os martelos que me parecem muito, mas mesmo muito rídiculos (...) os aventais da maçonaria movem-se cada vez mais no domínio do material. Não há na política deste país negócio obscuro, tráfico de influências, cumplicidades entre o público e o privado que não nos levem à irmandade dos aventais. Para cúmulo somos também informados de que os membros dos serviços de informações têm outras lealdades para lá daquelas que devem ao país e que inevitavelmente conduzem a esse enredo de lojas, grémios e orientes.
Se alguns milhares de homens deste país se sentem felizes por andar de avental, chamando-se irmãos e dizendo-se homens bons, essa é sinceramente uma coisa que não nos diz respeito e a mim me causa particular fastio. Mas a democracia que somos tem o dever de investigar o tráfico de influências em que justa ou injustamente a maçonaria surge no cerne e muito particularmente os partidos, sobretudo o PS e o PSD, têm de ser capazes de olhar para dentro e analisar as consequências para si e para o país das cumplicidades maçónicas de muitos dos seus dirigentes..
(...) Preocupemo-nos com os aventais que (...) se tornaram no símbolo daquilo que em Portugal o poder não pode e muito menos deve ser."
Sim. Por todo o lado a maçonaria. Na política - onde o inenarrável caso da votação em Fernando Nobre para presidente da AR, com apelo a solidariedades maçónicas passou como "natural" . Como é possível que um deputado apele ou actue através de solidariedades que não são públicas e escrutinadas? No PS e no actual governo, resmungam. Nas universidades, dizem-me. Com ascensões incompreensíveis, com pequenos e médios poderes (nas administrações das entidades académicas, na selecção de projectos e bolsas, etc). Até tipos que foram meus professores, uma escumalha.
À chegada a Lisboa vi isto:
António Reis, veterano deputado socialista. Que aqui recorda ter sido "presidente do conselho de ética da AR". Que disserta na televisão pública (acompanhado por um arremedo de jornalista, cheia de salamaleques, dando-lhe verdadeira passadeira) sobre o que é ser maçónico. Que recrutam na elite (sorrio, um tipo do PS!, a recrutar na elite). Que são procurados pelos políticos, que querem aderir para "colher os ensinamentos" que ali se redistribuem (não podiam ir à internet? A uns cursos de verão? por correspondência?). E o serviço público leva-o ao colo, na legitimação. Para os pacóvios se contentarem.
Que fazer com estas redes, esconsas, apropriadoras, adversas à sociedade aberta (explícita), democrática? Adversárias do desenvolvimento? Combatê-las? Como, se o teu vizinho é maçónico? Se o teu querido amigo os defende? Se o(s) teu(s) novo(s) ministro(s) também? Se a tua própria família te diz "não te metas com eles, cala-te"?
Há pelo menos uma coisa, fácil. Nunca votar em quem tem maçónicos. Como no partido deste infecto que recruta na elite ...
Entretanto, vim-me embora.
jpt
"Récits d'un jeune médecin" inclui sete contos, seguidos de "Morphine" e ainda "Les Aventures Singulières d'un Docteur". O conjunto pode ser lido como linha biográfica do dr. Bomgard, a personagem central, um registo auto-biográfico do início da carreira de Bulgakov, antes médico de província e depois integrando num exército russo branco no Cáucaso . Os sete contos iniciais narram a experiência de um jovem médico recém-formado e enviado para uma longínqua e paupérrima zona. O crucial é a apologia do saber experimental, de como a teoria aprendida (e o estudo constante) apenas corporiza no trabalho de campo (ali insano). É a apologia da modernidade, diante de todas as maleitas o médico apenas intenta curar, combater a ignorância popular feita destemor. É um tempo que não inclui qualquer relativismo, nenhuma sedução pelos saberes locais, a serem combatidos, nem pelas gentes cuja ignorância lhe repugna. "Morphine" é um texto lindissimo, cruzando o vício com a solidão, um desespero que será melhor prosa de Bulgakov.
Tudo se passa de 1917 em diante e é interessante ler estas histórias do ideal modernizador cruzadas com o eco muito distante e até insignificante da revolução de então - explícita a distância face à revolução em "Morphine", onde as preocupações pessoais emudecem os tais dias que noutros "mudaram o mundo" -, uma separação nada inocente. O enigmático final de "Les Aventures ..." deixando o distante médico possivelmente como desertor, refugiado na Argentina, é significativo do afastamento do autor ao tom de então.
Não sei se está traduzido em português (a net por vezes é um labirinto, e os títulos das traduções muito pouco fiáveis). Mas é livro que mais do que justifica uma edição.
[Mikhail Bulgakov, Novela Teatral, Madrid, Alianza Editorial, 1967, tradução de José Laín]
Releio estas desventuras de Bulgakov, aqui feito este Serguei Leontievich Maxudov, em tentativas de fazer representar a sua primeira peça "Neve Negra". E nisso a bater no muro, intransponível, de uma gerontocracia (artístico-teatral, no caso) na qual o conservadorismo é questão da sua sobrevivência, manutenção de estatuto, nem mesmo lhe vem de coisas estéticas. Que nem todas as opressões são Estaline, suspira a azeda novela, de canelada em canelada nas proas académicas de então - Stanislavski, Ostrovski -, às teorias sacralizadas. E às hierarquias meritocráticas por elas estabelecidas: "... Ivan Vasílievich - que llevaba cinquenta y cinco años de director artístico - había inventado una teoría famosa, y que todos consideraban genial, acerca de cómo el actor deve preparar su papel. Ni um solo momento he dudado de que la teoría era realmente genial, pero su aplicación práctica me sumía en la desesperación." (202)
Nisto, claro, surgirá, mesmo que em mera passagem, o Gato de Bulgakov, o magistral Gato Heurístico: "El gato es un estúpido - replicó Bombardov ... - padece miocarditis y neurastenia. Se pasa el día entero echado en la cama, no ve a nadie y, lógicamente, se assustó." "!El gato es uns neurasténico, conforme! - grité - Pero tiene buen olfato y comprendió perfectamente la escena. !Se dio cuenta de que era falsa! ? Comprende? ! Repugnantemente falsa!" (170).
Vale sempre a pena o Gato do Bulgakov.Chegar até aos quarenta sem ter lido a fragmentação de Iákov Petróvitch Goliádkin, conselheiro titular? Tivesse aqui chegado na idade própria, nova, e habitaria este o panteão, esse privado do cada um de nós. Mas cheguei, ainda bem. E ainda a tempo de nele me lembrar, nele reconhecer
o camarada Korotkov.