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Uma Cesta de Natal

por jpt, em 14.12.11
 

[Este é o texto de hoje no Canal de Moçambique]

Mês de Natal, também festa de família num país tão multi-religioso. Festa nas cidades, pelo menos para os que não adversos ao “universo cristão”, que Natal no campo é bem outra coisa. Festa para cristãos, por crença e hábito ancestral, e de outras confissões, por salutar convívio com usos que lhes foram alheios. De consumo excessivo, coisa de ritual. Pois momento de sacrifício, de oferendas, de dissipar para vir a (re)colher num futuro que venha.

Durante o mês vamos partilhando as “Boas Festas” com conhecidos ou desconhecidos, assim querendo-as para todos. No dia juntam-se as famílias, às vezes até nelas acolhendo amigos, esses assim anunciados como parentes, espirituais. Come-se e bebe-se em demasia, e nisso em cada casa conforme o que se pode. Para isso preparam-se as coisas do costume, que se a mesa deve ser farta o possível este não é momento de inovações. Pois em cada sítio comer-se-á diferente mas todos têm “aquilo que deve ser” o dia.

Trocam-se dádivas, as prendas, no dizer e confirmar que “somos família, somos dos nossos” e nisso até se estendem, a esses amigos então ali e mesmo a outros, visitados para a ocasião, num afinal “és como família”. Trocam-se prendas e sentimentos, sem sentimentalismo. É altura em que mesmo os mais empedernidos gostam de ser ofertados, de serem assim lembrados. Convocados.

Alguns ofertam os mais pobres, forma de dizer que todos são parentes ou que o deveriam ser nesta humanidade. Talvez por isso tão acertados vão aqueles que dizem que o Natal deveria ser todos os dias. Os religiosos vão à missa. E nisso falam com os antepassados, é dia de (também) os evocar. E, até, de os invocar.

Assim comungamos, “estamos juntos”. Tréguas nas zangas, intervalo no individualismo, hesitações no puro egoísmo. Para continuarmos a ser. E na esperança que por todo este excesso, de coisas e sentimentos partilhados, venhamos a ter e a ser mais. Até este ateu, que escreve, sente assim os dias. Mesmo que depois siga, sei-o bem, na sua concha. Imóvel.

Nesta altura, imigrante longe da família, festas assim dolorosamente amputadas, partilho a minha imaginada cesta de Natal, aquelas oferendas que escolheria, tivesse eu o dinheiro e a gente para ofertar. Alguns lerão e resmungarão que o povo não tem dinheiro para isto, que agrido a pobreza alheia. Outros dirão que faço publicidade, deverei estar a ser pago. Sejam, sff, natalícios, suspendam a má-vontade. Partilho gostos, apenas. Então é assim a minha imaginada cesta de Natal, 10 prendas:

Um livro, “Sangue Negro” de Noémia de Sousa, reeditado este ano pela Marimbique. E alguém poderá ler, alto, algo como se canção de Natal: “Dia a dia / o pulso à roda de tudo / se aperta mais e mais … /Dia a dia, grades e grades se forjam / tapando o sol de toda a gente. / Dia a dia / do fundo da noite em que nos estorcemos / mais e mais se sente / a certeza radiosa de uma esperança …”.

Um saco de castanha de caju. A castanha é a minha paixão. Compro-a (sacos de 180 meticais) nas vendedoras do mercado do peixe, e nunca me arrependi.

 

O single “Caranguejo”, de Stewart Sukuma. Porque alegra. E porque o cantor nos vem dando entretenimento denso, juntando a tradição urbana com a moderna qualidade de produção, sem facilitismo. Se há indústria musical aqui é Stewart.

Um frasco de mel, por exemplo daquele de Boane, que ainda não é uma compota química.

Uma aguardente Aloe, produzida no Mossuril. Que tal um intervalo no culto dos “rótulos vermelhos” ou “negros”? Esta destilação da aloe vera, célebre planta dita miraculosa merece atenção. Não curará os excessos alcoólicos mas animará o convívio.

Olhando o que vem do Mossuril junto o licor de jambalao (Jamba Brandy), para beber fresco e partilhar com as senhoras. E esqueça-se a Amarula, esse leite condensado bem publicitado, sff.

Uma fotografia de Ricardo Rangel. No ciclo de actividades que o homenageia já houve a exposição “Rangel e as crianças”, na galeria Kulungwana (estação dos CFM). Por 3000 meticais (imenso para a maioria, mas acessível à burguesia natalícia) pode-se ter uma das fotos com que Rangel retratou e imaginou Moçambique. A dar a alguém a quem se quer dizer algo especial.

Um conjunto de seis frascos de condimentos (300 meticais). Eu compro os do restaurante Petisco (no Hoyo-Hoyo), excelente fabrico caseiro, e proponho uma mescla de achar de limão, chutney de limão e tâmara, chutney de manga, miscut de tendlim, miscut de manga e kassaundi de manga.

Um queijo de Chimoio, até amanteigável, ou até mesmo do apicantado. Bem mais saboroso do que os sintéticos que chegam da vizinhança ou dos básicos e caríssimos portugueses que aportam a Maputo.

Outro disco, o “Timbila Ta Venâncio – Ao vivo no Teatro África”, o apenas segundo disco do enorme Venâncio Mbande, gravado este ano. Bom som, boa produção, uma selecção de 11 significativas músicas. Se tantas loas tem a música de timbila então é obrigatório levar o disco para casa dos parentes. Sem discursos, só para gozar a vivacidade e a riqueza, feitas alegria.

Desejo a todos um Natal “saborosamente moçambicano”.

jpt

publicado às 16:34

 

O dia está feio, e frio. E assim já se sabe que o apelo das escalfetas se impõe, sempre. Ainda assim será de convocar os vizinhos: hoje às 18 horas, no Kulugwana (estação dos CFM), há o lançamento da reedição do "Sangue Negro" de Noémia de Sousa, uma iniciativa da Marimbique (e, como tal, do Nelson Saúte, avatar editor), por ocasião do que seria o 80º aniversário da poetisa (fundacional).

 

Será de lembrar, sem rodeios, que tirando alguns escassos indefectíveis a sua poesia está algo esquecida. Mais uma razão para a gente se esquecer do frio de hoje (ou arranjar agasalho) e ir até à baixa, no fim da tarde. Ouvir, ler, até comprar. Até logo.

 

Para os visitantes aqui deixo o identitário "Bayete".

 

BAYETE

para Rui Knopfli


Ergueste uma capela e ensinaste-me a temer a Deus e a ti.

Vendeste-me o algodão da minha machamba

pelo dobro do preço por que mo compraste,

estabeleceste-me tuas leis e minha linha de conduta foi por ti traçada.

Construíste calabouços para lá me encerrares quando não te pagar os impostos,

deixaste morrer de fome meus filhos e meus irmãos,

e fizeste-me trabalhar dia após dia, nas tuas concessões.

Nunca me construíste uma escola, um hospital,

nunca me deste milho ou mandioca para os anos de fome.

E prostituíste minhas irmãs, e as deportaste para S. Tomé...


- Depois de tudo isto, não achas demasiado exigir-me que baixe a lança e o escudo

e, de rojo, grite à capulana vermelha e verde que me colocaste à frente dos olhos: BAYETE?

 

 

Quem tiver curiosidade para ler mais poderá encontrar uma dezena de poemas aqui.

 

jpt

publicado às 12:32

Nestes últimos dias no ma-schamba tem-se falado mais de colonialismo do que nos anteriores seis anos que as nossas courelas já levam. Muito, mas não só, a propósito do livro de memórias de Isabela Figueiredo (que, vê-se, mexeu na colmeia. Advertidamente, acho). Livro que a jornalista Vanessa Rato aventa ser um momento fulcral na história intelectual portuguesa, anunciando o advento (ou a possibilidade) de um pensamento pós-colonial em Portugal. Talvez por isso, pela percepção ou sensação desse episódio único, tanto aqui têm falado os bloguistas, os comentadores (os residentes e não só) e, até, alguns outros bloguistas que para cá têm feito ligações (mais ou menos abonatórias). Dando-me, ao fim destas semanas, a sensação de já ter os cromos opinativos todos (e isto sem sentido pejorativo), os mais fáceis e os mais difíceis. A caderneta completa! Mas fui compreendendo o meu erro. Pois se a continuidade (muito bem-vinda) de comentários me levou a desconfiar desse sucesso, demonstrando afinal a incompletude, foi a tal referência à actual emergência da reflexão "pós-colonial" em Portugal que me fez entender o meu erro. Pois, e por arrastamento, por analogia ou homofonia, se se quiser, isto levou-me a perceber esta questão no seio do pensamento pós-moderno.

 

Tento explicar-me. Sou um homem do tempo das cadernetas de cromos, essas "grandes narrativas" conclusivas, com princípio, meio e fim, conclusivas e argumentáveis. Ainda que algo incompetente no assunto, reconheço, pois apenas completei as colecções "Mundial de 1974" - no qual Johan Cruyff e sua Laranja Mecânica foram injustiçados pela vil Alemanha -,

 

[imagem encontrada no Santa Nostalgia]

 

e uma esplêndida e mui expressiva "História de Portugal", da qual guardo ainda memórias muito vivas, constantes, em particular dos cromos da muito dumeziliana Deuladeu Martins botando pão muralhas fora, dos cotos de Navas de Tolosa, do pavoroso e zarolho (Dumézil também?) Geraldo Sem-Pavor ao assalto em Évora, do entalado Martim Moniz ali às portas de Lisboa, e claro que do Nosso Senhor Jesus Cristo planando nos céus da Batalha de Ourique abençoando Afonso Henriques, seus homens e, obviamente, todo o Portugal que aí vinha. Para além do último e destacado cromo, o alusivo ao Presidente do Conselho, Professor Marcello Caetano, que Deus tivesse na Sua santa guarda.

 

[imagem encontrada no Pena e Espada]

 

Ora o que ultimamente me tem revelado a minha filha é que o paradigma "cromo" faleceu. A grande narrativa terminável, conclusiva, a encerrar de modo contíguo em apropriada caderneta, é coisa do passado. Deparamo-nos hoje com uma versão diversa, uma contínua actividade de troca, inacabável, dos stickers. Seja em versão Hannah  Montana seja nos "fofos". Sendo que os rapazes [lá está, a vil ideologia de género a moldar as jovens mentes, a discipliná-los para os papéis sociais a que aderirão julgando-os naturais] têm uma panóplia de viçosos super-heróis para fruirem da mesma actividade.

 

[imagem encontrada aqui]

 

[imagem encontrada aqui]

 

Nesta incessante troca de itens não se vislumbra conclusão, não estão eles numerados nem catalogados. Nem são arrumáveis por predeterminada ordem, cada coleccionador(a) preenche e repreenche criativamente os múltiplos suportes (livros, pastas, cadernos, folhas, paredes, frigoríficos, sei lá) que vai escolhendo. O limite, conceptual e estético, seria o céu não fosse tudo isto ser mediado, entenda-se reprimido, pelas bolsas (aliás, cartões de crédito) paterno-maternais [a tal ideologia de género que sobrevaloriza o termos "paternais" tem que ser combatida]. Estamos diante de uma corrente total de dádivas, sem objectivo nem finalidade para além delas próprias. Barro para um novo (pós-moderno? pós-colonial?) ensaio sobre o dom, com toda a certeza.

 

Assim esclarecido (actualizado) pela minha filha regresso ao blog e à temática colonial, e mais descansado. Que penso eu, bloguista aqui fundador e que nada tenho falado do colonialismo, do que para aqui se vai dizendo? (o colonialismo ou não, o racismo ou não, o Eusébio ou não, o Monstro Sagrado ou não?, o electricista da Matola ou não, o que os portugueses deixaram ou não, o Bloco de Esquerda ou não, etc. ou não?). Não posso achar, nem resumir. Não porque me faltem cromos na caderneta. Mas porque ela, afinal, não existe. Apenas posso, agora (desde Dezembro de 2009) que parece que começou o pensamento pós-colonial em Portugal, aproveitar para meter uns stickers (versão "fofos") na porta do frigorífico e uns outros no blog. Para o blog seguem estes, nada raros:

 

 

Num texto de 1936 George Orwell (autor muito simpático a largo espectro de leitores) escreveu. "Here was I, the white man with his gun, standing in front of the unarmed native crowd - seemingly the leading actor of the piece; but in reality I was only an absurd puppet pushed to and fro by will of those yellow faces behind. I perceived in this moment that when the white man turns tyrant it is his own freedom that he destroys. He becomes a sort of hollow, posing dummy, the conventionalized figure of a sahib. For it is the condition of his rule that he shall spend his life in trying to impress the "natives", and so in every crisis he has got to do what "natives" expect of him. He wears a mask, and his face grows to fit it." (George Orwell, "Shooting an Elephant", 1936, Inside The Whale and Other Essays, Penguin Books, p. 95). Repito, é um texto de 1936.

 

 

Entretanto na página Facebook de um prezada colega encontrei este filme que de imediato me fez lembrar este livro, comprado recentemente na Livraria Sá da Costa (ao Chiado, Lisboa) pela quantia de 0,5 euros.

 

[Aimé Césaire, Discurso Sobre o Colonialismo, Sá da Costa, 1978. Tradução de Noémia de Sousa, prefácio de Mário de Andrade]

 

Podemos hoje olhar para o livro, na realidade um panfleto com todas as características desse tipo de documento, publicado originalmente em 1955 (e retomando um texto de 1950), com grande distância. Césaire era ainda membro do Partido Comunista Francês, explicitamente crente na filosofia de história comunista (e o panfleto termina com uma profissão de fé típica, hoje anquilosada), a qual até contradiz parte do argumento multilinear que defende (as "possibilidades" de desenvolvimento que imagina). Defende o afrocentrismo de Cheikh Anta Diop (que não será ele próprio reactivo?), hesita (apesar de tudo) na refutação radical do conceito de filosofia bantu do padre Tempels,  mi(s)tifica o comunitarismo das sociedades africanas ante-coloniais ("Eram sociedades democráticas, sempre. Eram sociedades cooperativas, sociedades fraternais." (27), e chega a pontapear Marco Polo como exemplo do colonialismo. Mas se não o lermos anacronicamente (como ele o fez ao pobre de Marco Polo) encontramos um diagnóstico acutilante. É só escolher para citar. Escolho dois trechos: um, porque muito orwelliano, e porque vem a propósito do que aqui (ma-schamba) vem sendo dito: "Será preciso estudar, primeiro, como a colonização se esmera em descivilizar o colonizador, em embrutecê-lo, na verdadeira acepção da palavra, em degradá-lo ..." (17) "...a colonização desumaniza, repito, mesmo o homem mais civilizado; que a acção colonial, a empresa colonial, a empresa colonial, a conquista colonial, fundada sobre o desprezo pelo homem indígena e justificada por todo esse desprezo, tende, inevitavelmente, a modificar quem a empreende (...) É esta acção, este ricochete da colonização, que importava assinalar." (24).

 

E escolho outro trecho dedicado a alguns dos comentadores. O autor segue Lévi-Strauss e Leiris (então figuras centrais no pensamento antropológico em francês), adversários da ideia de supremacia cultural (e seu corolário, a ideologia do "progresso) - coisa que, sessenta anos depois continua a não entrar na cabeça de muito boa gente, uns porque acham que ele (progresso) é muito bom e entendível, outros porque confundem isto com um tal de "relativismo". Disse Césaire (repito, traduzido por Noémia de Sousa, introduzido por Mário de Andrade e publicado em Portugal pela Sá da Costa em 1978, e vendido em finais de 2009 no centro de Lisboa por 0,5 euros):

 

"Falam-me de progresso, de "realizações", de doenças curadas, de níveis de vida elevados acima de si próprios. Eu, eu falo de sociedades esvaziadas de si próprias, de culturas espezinhadas, de instituições minadas, de terras confiscadas, de religiões assassinadas, de magnificiências artísticas aniquiladas, de extraordinárias possibilidades suprimidas. Lançam-me à cara factos, estatísticas, quilometragens de estradas, de canais, de caminhos de ferro. Mas eu falo de ... milhões de homens arrancados aos seus deuses, à sua terra, aos seus hábitos, à sua vida, à vida, à dança, à sabedoria. Falo de milhões de homens a quem inculcaram sabiamente o medo, o complexo de inferioridade, o tremor, a genuflexão, o desespero, o servilismo. Lançam-me em cheio aos olhos toneladas de algodão ou de cacau exportado, hectares de oliveiras ou de vinhas plantadas. Mas eu falo ... de economias adaptadas à condição do homem indígena desorganizadas, de culturas de subsistência destruídas, de subalimentação instalada, de desenvolvimento agrícola orientado unicamente para benefícios das metrópoles, de rapinas de produtos, de rapinas de matérias-primas. (...) Falam-me de civilização, eu falo de proletarização e de mistificação." (26)


Tenho mais stickers. Este é um muito wallersteiniano trabalho sobre a economia colonial.

 

[Carlos Fortuna, O Fio da Meada. O Algodão de Moçambique, Portugal e a Economia-Mundo (1860-1960), Afrontamento, 1993]


Cola bem ao texto anterior, pois o que aqui se trata é da ligação profunda da economia da cultura forçada de plantas comerciais em África e do processo de industrialização português (metropolitano). Para alguns poderá servir para deixar de fazer uma história especulativa, contra-factual, essa do "Ah, se Marcello tivesse actuado... Ah, se Salazar tivesse tido outra visão". Sim, podiam ter tido. Mas não tiveram pois "é(era) a economia, estúpido!". [Já agora, dá para colaborar no entendimento sobre a indústria portuguesa no seio da União Europeia ...] Servirá, acima de tudo, para compreender que Portugal era um país colonial, não um país com colónias.

 

 

[Lídia Jorge, A Costa dos Murmúrios, Círculo de Leitores, 1988]

 

Voltando à primeira forma, essa de ver quem e como eram os colonos inseridos no pacote "sistémico". Há um quarto de século a escritora Lídia Jorge, que veio a tornar-se figura importante na ficção portuguesa, escreveu este romance passado na Beira colonial. Traçou um quadro complexo da sociedade colonial de então, da (ir)relação havida com o mundo colonizado, um meio até contraditório (veja-se a evolução da personagem protagonista, Eva-Evita), assim influenciando as mentes dos portugueses (metropolitanos ou residentes), numa flutuação das concepções. Contrariamente ao que os blogodesenhadores actuais muito gostam não incidiu particularmente sobre "as conas das negras" (a burguesia é sempre espantável) mas encetou o livro com a célebre paisagem dos múltiplos carregamentos de cadáveres de negros, envenenados por álcool metílico, e dos discursos e sensações gerados sobre isso. Um pastel bem mais impressionável, e significante, para os menos espantáveis, diga-se.

[Adelino Serras Pires & Fiona Claire Capstick, The Winds of Havoc, St. Martin's Press, 2001]

 

Um belíssimo sticker é este, a propósito de sabermos das memórias, dos interstícios do mundo colonial. São as memórias de Serras Pires (que têm edição portuguesa, presumo que na Europa-América), homem do mundo, de relativas posses, uma personagem bem conhecida, com a característica de serem muitíssimo legíveis (a co-autora, Fiona Capstick é uma profissional da escrita). Colono filho de colono, Serras Pires teve (e ainda tem) uma vida cheia, figura carismática. [Para os adeptos da caça este é um livro incontornável]. Muito interessante a forma como aqui se explicita, sistemática e conscientemente, a visão benéfica da África colonial, e de como no livro se subentende, e entende, as particulares modalidades de relacionamento (por um lado sistémico, por outro lado pessoalizado) de relacionamento com os africanos "originários", como agora se diz. Mas traz também as flutuações de relacionamento intra-mundo colonial - são recorrentes e profundas as críticas à governação colonial, aos mandarins metropolitanos, ao BNU (a finança todo-poderosa) e, excelente, "aos a sul do Save" (questão que largas décadas depois, e com tão diferentes actores, ainda se coloca). Um episódio marcou-me na leitura do livro - o pai Serras Pires, velho colono inaugural na região do Guro adoece, já idoso, ao fim de trinta anos na região. Tem que ser evacuado de urgência mas não sobreviverá à viagem de carro até à Beira. É então necessário evacuá-lo de avião mas não há pista de aterragem no Guro. Será construída durante uma noite, por mobilização popular. Cabe a história no modelo? Explica o colonialismo? Se sim, cristalizamo-la e embandeiramo-la? Se não, censuramo-la?

 

São os meus stickers. Do após-colonialismo. Quanto aos do pós-colonialismo, não tenho grande curiosidade. Valem-me tanto como a tralha avulsa da "vocação milenar" ou da "gesta pátria". Ou menos, que nem lhes acho interesse museológico. E estes stickers, e mais alguns que meti na porta do frigorífico (aka, geleira), valem-me para os próximos tempos. Daqui a seis anos, se ainda houver ma-schamba, volto a botar sobre colonialismo e após-colonialismo. Mas não, espero (que a esclerose não me ataque), sobre o pós-colonialismo.

 

jpt

publicado às 03:03

Negacionismo. E Noémia de Sousa.

por jpt, em 13.11.09

Algumas recentes conversas tidas nos comentários do ma-schamba, e também um inenarrável texto reproduzido no Forever Pemba, avivaram o meu desconforto com algo, até generalizado ainda que hoje muito envelhecido, que não passa de negacionismo. O interesse pela história e pelas histórias, pelas suas versões múltiplas, intenta evitar as simplificações, as polarizações encomiásticas e/ou diabolizadoras. Isso implica aceitar como documentos, fontes de saber, todas essas representações, ainda que sejam auto-centradas, quantas vezes auto-legitimadoras (não o é sempre o discurso próprio?). Mas isso não implica obscurecer que muitas vezes, por razões ideológicas e/ou existenciais, o que lhes serve de base é o tal negacionismo. Normalmente associamo-lo aos "herdeiros" dos mais abjectos dos totalitarismos de XX (o pró-nazi, o pró-estalinista). Mas na pequena escala portuguesa também o temos, talvez mais manso na sua expressão pública, talvez menos veemente na sua expressão académica. Mas persistente.

Em 1976 Eduardo Lourenço escreveu "um livrinho ... com um título irónico": "O Fascismo Nunca Existiu". Que se debruçava sobre o colonialismo e sobre os traços "fascistas" (autocráticos) que a sociedade portuguesa tivera e mantinha. Em cujo caldeirão vai cozendo - quase em banho-maria - este negacionismo, ainda hoje actual, o do "o colonialismo nunca existiu", sempre casado com a crença no "fardo do homem branco" e dormindo com a "lusotropicalidade" (aliás, lusofonia - que é o quartel onde aquela se acantona hoje).

Contextualizar as vivências, ouvi-las, saber-lhes o interesse, não é nem de perto abraçar o negacionismo que vive em algumas delas. Nem, e aqui o mais importante, respeitá-lo. Intelectual, politica e moralmente.

Aqui a este propósito aqui fica um poema. Datado (1949 - até anterior ao verdadeiro surto de povoamento colonial em Moçambique), na forma e no conteúdo. Esgota o mundo? Não. Mas é muito significativo - e não só pelo seu final.

noemia sousa

[Noémia de Sousa, Sangue Negro, Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001]

PatrãoPatrão, patrão, oh meu patrãoPorque me bates sempre, sem dó,com teus olhos duros e hostis,com tuas palavras que ferem como setascom todo o teu ar de desprezo motejadorpor meus actos forçadamente servis,e até com a bofetada humilhante na tua mão?Oh, mas porquê, patrão? Diz-me só:que mal te fiz?(Será o teu eu nascido assim com esta cor?)Patrão, eu nada sei ... Bem vêsque nada te ensinaram,só a odiar e a obedecer ...Só a obedecer e a odiar, sim!Mas quando eu falo, patrão, tu ris!e ri-se também aquele senhorpatrão Manuel Soares do Rádio Clube ...Eu não percebo o teu português,patrão, mas sei o meu landim,que é uma língua tão belae tão digna como a tua, patrão ...No meu coração não há outra melhor,tua suave e meiga como ela!Então porque te ris de mim?Ah patrão, eu levanteiesta terra mestiça de Moçambiquecom a força do meu amor,com o suor do meu sacrifício,com os músculos da minha vontade!Eu levantei-a, patrãopedra por pedra, casa por casa,árvore por árvore, cidade por cidade,com alegria e com dor!Eu a levantei!E se o teu cérebro não me acredita,pergunta à tua casa quem fez cada bloco seu,quem subiu aos andaimes,quem agora limpa e a põe tão bonita,quem a esfrega e a varre e a encerra ...Pergunta ainda às acácias vermelhas e sensuaiscomo os lábios das tuas meninas,quem as plantou e as regou,e, mais tarde, quem as podou ...Perguntas a todas essas largas ruas citadinas,Simétricas e negras e luzidiasquem foi que as alcatroou,indiferente à malanga de sol infernal ...E também pergunta quem as varre ainda,manhã cedo, com a cacimba a cobrir tudo ...Pergunta quem morre no caistodos os dias - todos os dias -,para voltar a ressuscitar numa canção ...E quem é escravo nas plantações de sisale de algodão,por esse Moçambique além ...O sisal e o algodão que hão-de ser "pondos" para tie não para mim, meu patrão ...E o suor é meu,a dor é minha,o sacrifício é meu,a terra é minhae meu também é o céu!E tu bates-me, patrão meu!Bates-me ...E o sangue alastra, e há-de ser mar ...Patrão, cuidado,que um mar de sangue pode afogartudo ... até a ti, meu patrão.Até a ti ...
jpt

publicado às 16:02

Amanhã, quinta-feira, 20 de Setembro, às 18 horas, no Instituto Camões, Nelson Saúte falará sobre a poetisa Noémia de Sousa. Até lá ...

publicado às 18:29

Um pouco de Noémia de Sousa

por jpt, em 12.05.04

um pouco de poema......

 

E as bolas macias do algodão

vão embeber-se todas, com volúpia;

Do vermelho do sangue jorrado

da boca do homem que morreu escravizado

na terra negra do algodão...

E vão ficar rubras, rubras, em sangue ensopadas,

as nuvenzinhas brancas, brancas do algodão!

 

Noémia de Sousa, "O Homem Morreu na Terra do Algodão", Sangue Negro, Associação dos Escritores Moçambicanos, 2001, organização de Fátima Mendonça, Nelson Saúte, Francisco Noa (poema escrito em 1949)

publicado às 22:02


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