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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
O pai mostra à filha esta canção, e ir-lhe-á contar o seu porquê. Que é de um filme muito "incorrecto", uma poliândrica Jean Seberg partilhando vida com dois garimpeiros no wild west, o belo jovem Clint e o velho e magno Lee Marvin. Este, percebendo que o tempo do alegre triunvirato se esgota, decide partir deixando o futuro ao jovem casal. Sai, másculo, mas com aquela amargura consolável pela vida. E canta esta "I was born under a wandering star", um must, um cume ...
Lee Marvin, I was born under a wandering star
O youtube começa ...
Pai: ouve isto ...
Youtube: orquestra ....
Filha: .....
Youtube: (canta lee marvin ...)
Filha: porque é que já não há vozes assim?
Pai (muito reaccionário): porque já não há homens ...
Há algumas semanas, num sábado de manhã, fui buscar a Carolina ao Clube Hípico, ao Campo Grande, para onde fora com umas das suas raríssimas amigas de Lisboa. Nos seus 12 anos ela mal conhece a cidade, que sempre desusou, e por isso regressámos em modo pedestre. Atravessámos a Torre do Tombo, indo-lhe à porta, para que conhecesse ela onde eu trabalhei um ano e tal, cruzámos a famigerada "Direito" onde andei um mês e meio antes de conseguir fugir, descemos ao Colégio Moderno, a rua do presidente Soares e da escola das suas amigas de cá, e fui-lhe mostrar as livrarias daquela rua, que frequentava diariamente naquele ano e meio de trabalho nos então "Arquivos Nacionais/Torre do Tombo", no início dos 1990s - frequência diária pois não se podia fumar lá dentro, o ambiente era um bocado tétrico, um servilismo patético para com a então vice-directora, uma coisa enjoativa, um medinho sempre presente. Chegado ao almoço tinha que sair dali, esquecer a cantina local, procurar um sol afastado daquele "pidesco" ambiente [o arquivo da PIDE estava num andar superior, talvez infectasse o edifício], abandonar a ditadura do relógio de ponto que fazia aquela gente perfilar-se na hora exacta da saída, o mundo do funcionalismo público no seu pior formato.
Saía então todos os dias, em alguns percorria os poucos restaurantes na área circundante, nos outros vasculhava as duas livrarias ali à "João Soares", uma especializada em livros estrangeiros (e da qual não me lembro o nome) e a outra a "Lazio", apinhada de edições nada recentes. Um manancial de livros, a comprar, folhear, registar para "mais tarde". Ou apenas passar o tempo. Recordo-me de, quantas vezes, ali me enjoar com o pó dos livros, um prazer paradoxal.
Pois fui lá agora mostrá-la à Carolina, não porque pense eu que vá ela virar bibliofaga, menina que é dos tempos electrónicos e pós-pdf, apenas para partilhar onde gostei. Estava fechada a "Lazio", com uns papéis nas janelas, mas nela entravam dois homens, com ar diligente. Julguei assim ser coisa de arrumações ou rearranjos. Mas leio agora que fechou.
Que feche uma livraria daquelas no centro geográfico do mundo académico lisboeta espanta-me. Ou talvez já nem isso. Pois apenas vai assim.
Ontem fui ao Festival BD da Amadora, acompanhado da Mafalda cá de casa. Lá está uma breve exposição dedicada a "Mafalda", a propósito do cinquentenário. Uma das "tiras" afixadas é esta - a ter imenso a ver com o que passa na Lisboa de hoje, em vários sentidos, e até nos últimos postais deste ma-schamba.
Não há dúvida: "Mafalda" é o máximo. Viva Quino.
Na tv, canal zapping, um filme (muito fraco, uma comédia imbecil) com Isabelle Huppert. Lindíssima, como sempre, agora com a vantagem de trazer com ela a idade, contrariamente às suas colegas dementes que se esticam, nisso perdendo relevo e relevância.
A meu lado, no sofá, já terminada a convalescença após o entorse que a entregou a um par de muletas, emprestado por um casal de vizinhos bons samaritanos que conhecemos há pouco, a minha filha acompanha-me no pobre filmito, sem fazer qualquer ideia de quem é esta protagonista. E também sem saber/perceber o quão arquétipo de beleza é esta mulher, assim gloriosa. De repente diz "esta actriz parece a ...". "Quem?", "A ....", insiste ela, com aquele enfado que lhe vem acompanhando os diálogos com este senil progenitor. Repito a minha distracção num "Qual ...?". "A dona das muletas!!, pai!" riposta, até já ríspida ... Sorrio, até surpreso, e ... sim... não deixa ela de ter razão. E ao meu "tens que lhe dizer isso" dispara "para quê!". "Acho que ela vai gostar de ouvir isso", sou eu paternal. "Não vou dizer nada, claro, que coisa!", encerra ela. "Ok, pronto!!" ("não te chateies", já mudo).
E assim acabou. E como é coisa que um tipo casado não deve andar a dizer às senhoras casadas, fica este acertado diagnóstico pré-adolescente confinado a este recanto (que presumo visitado por algum dono de muletas ... emprestáveis).
A aluna tem 10 anos. Está no 6º ano de escolaridade. Boa aluna e lê bem, bastante bem. Para a disciplina de Matemática tem um "Caderno de Actividades" (de Ana Ribeiro Rosa, Lourdes Neves e Natália Vaz. Publicado por Raiz Editora). Hoje realiza a Ficha 7 dedicada a "Números Naturais". Uma das perguntas é esta:
"Que conjeturas fazes sobre os números que podem ser escritos como potências de base 2?".
A aluna, a qual, e repito, lê bem, lê-me: "Que conjetúras fazes sobre os números que podem ser escritos como potências de base 2?". Eu emendo-a, de imediato, digo-lhe "conjéturas". Ela responde-me: "mas não está lá nada para que seja assim!". Eu mantenho a emenda. Apenas com o argumento da autoridade, claro, dado que estou graficamente desprovido de qualquer outro. Ela aceita, pudera. Mas resmungando (pois "quem sai aos seus ...").
jpt
Vejo o filme numa sessão vespertina, na avenida de Roma, a pequeno-burguesia envelhecida lisboeta. Entro com a filha na pequena sala, já em quase escuridão. Ela senta-se e, enquanto arrumamos pertences e pipocas, a meu lado uma septuagenária, elegante, ar viçoso ainda, ali acompanhando um netito bem pequeno, sorri-me e diz-me, cúmplice: "Agora é a nossa função!".
Arranjo uma força sobre-humana, vinda sei lá de onde, para lhe devolver o sorriso. E logo desabo na cadeira. Aterrorizado. Devastado. Enregelado nesta "Idade do Gelo"!
Muito bom é o filme. Até capaz de, alguns minutos depois, me devolver a meninice da gargalhada.
jptAbro o bar e exclamo "Olha, o último whiskie do avô António". "Porque dizes isso?". "Este resto é a última garrafa que o avô mandou comprar antes de morrer". "Pai, as pessoas só morrem quando nos esquecemos delas!". "Pois é, querida, por isso é que nós bebemos "à memória" de alguém, para que as pessoas não morram". Por isso bebo a garrafa do meu pai António, do teu avô. Por isso bebo o último whiskie do avô António. E enquanto isso te dou a conhecer o vinil:
Ela: "Pai, por que é que o Paul está de costas? ..."
Ele: "!!!!! Uau!!! Se soubesses a polémica que isto deu!"
Ela: "Por que é que estás a rir?"
Ele": "Porque apanhaste ...."
Ela: "O quê, pai?"
Ele: "O dantes"
"Uma música feliz", diz ela.
"Os avós tiveram pena quando foste embora?", pergunta-me ela, e fico com uma manga na garganta.
"O clube das ex-namoradas do sargento pimenta", traduz ela, enquanto se ri.
jpt
Há anos, um dia, deixei-a aqui, era então assim. A fotografia é uma memória. Agora, os anos passados, hoje mesmo, também dito "dia de África" e "dia da Argentina", é dia de prata na nossa família, a princesa cumpre uma década. Dez anos de vida. Menina, já.
jptHá dez anos (já!?) nasceu a nossa filha. Em Lisboa. Uma imensidão de coisas vim a aprender desde então. Mas antes mesmo dela nascer, quando fomos para Portugal para o parto, aprendi duas coisas:
a) que a sociedade lisboeta se dividia entre os que tinham filhos na "Mac", os arrivistas feitos gente fina (agora à rasca) que arrasta a voz, e os que tinham filhos na "Alfredo da Costa", gente menos fina (que continuam à rasca) e que não arrasta a voz.
b) que a melhor maternidade de Lisboa é o Hospital Particular (na Luís Bívar, mesmo defronte da velha casa dos meus avós maternos). Porquê? Porque é mesmo ao lado da Alfredo da Costa e quando há algum problema no parto vai-se para lá num instante para o resolver.
A Carolina nasceu na Alfredo da Costa (e, já agora, não arrasta a voz, está proibida de tratar os adultos por "tios" e muito menos por "tíós", e aprendeu que com eles, os mais-velhos, o tratamento na segunda ou terceira pessoa é recíproco).
Com tudo isto parece-me que vai ter pena de saber que a maternidade Dr. Alfredo da Costa vai encerrar. Quanto às razões disso acontecer não percebe nada, nem eu posso explicar. Mas, pelo sim pelo não, vou avisá-la que os tipos da "Mac" julgam que é bom para eles. Ainda não perceberam que é melhor mudar o sotaque.
jpt