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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Eduardo Hughes Galeano nasceu em Montevidéu, Uruguai, em 1940. Faleceu hoje. A notícia saiu há pouco mais de meia hora.
Galeano é o autor de mais de quarenta livros, traduzidos em diversos idiomas.
A sua carreira iniciou-se no jornalismo mas a sua obra é transversal aos diversos géneros literários como o ensaio, a poesia, a narrativa, a análise política e a História.
"As veias abertas da América Latina", romance histórico onde denunciou a opressão e a amargura do continente sul americano numa perspectiva politico-económica, será concerteza a sua obra mais conhecida.
Aqui deixo uma frase que dizem ser sua. Para mim, resume a sua personalidade e o seu carisma.
'Na parede de um botequim de Madrid, um cartaz avisa: “Proibido cantar”. Na parede do aeroporto do Rio de Janeiro, um aviso informa: “É proibido brincar com os carrinhos porta-bagagem”. Ou seja: Ainda existe gente que canta, ainda existe gente que brinca.'
VA
Em 19 de Fevereiro fui viver para Moçambique, já lá tinha estado seis meses e tal em trabalhos. Foi em 1997, faz hoje exactamente 18 anos. Cada vez mais me convenço que errei agora, ao partir neste torna-viagem. Paciência, está feito. Telefonam-me de Maputo, a lembrarem a data, pretexto para a sorridente provocação "quando é que voltas?" em entoação de como se tivesse eu hora de chegada a Mavalane ... Sorrio, também, pois se nem visto tenho.
Para as machambas destes 18 anos e tal fico-me com este poema
Musgo
Dir-se-á mais tarde;
por trémulos sinais de luz
no ocaso quase obscuro;
se os templos contemplando
estes currais sem gado
ruíram de pobreza.
Dir-se-á depois
por púlpitos postos em silêncio;
peso também a decompor-se
no mesmo pouco som;
se desaba o desenho
da nave antes de fermentar
a cor da sua pedra,
como fermentam leite e lã
de ovelhas mais salinas.
Dir-se-á por fim
que nenhum tempo se demora
na rosácea intacta;
e talvez
que só o musgo dá,
em seu discurso esquivo
de água e indiferença;
alguma ideia disto.
(Carlos de Oliveira, "Musgo")
Com o nome de baptismo Marcus Vinitius da Cruz de Melo Moraes (apenas aos nove anos é registado como Vinicius de Moraes), nasce no dia 19 de Outubro de 1913, na Rua Lopes Quintas nº114, no bairro do Jardim Botânico, Rio de Janeiro. Vinicius morreu de edema pulmonar a 9 de julho de 1980 em sua casa na Gávea, também no Rio de Janeiro.
Balada da Ameixa Seca
Vai à mercearia e compra ameixa seca,
P'ra o intestino a ameixa é levada da breca!
O mal do Ocidente - quem há que não o sinta? -
é não ter a tripa sempre limpa.
Com seus altos valores, o Ocidente
dá por demais ao dente, dá por demais ao dente.
Põe-me os olhos nos povos que só comem arroz:
dão melhores guerrilheiros do que nós.
Um saquitel de arroz, uma biciclet',
arma na bandoleira - e lá vai o viet.
"Noss'povo" ao contrário, como o que apanha à mão.
Até parece fome de muita geração!
E larga, já comido, o corpo em qualquer canto.
Sonha Terceiro Mundo e é Europa, entretanto.
Encostado ao sobreiro ou ao ficheiro,
"Noss'povo" já nada tem de marinheiro.
Sua tripa, represa, é trabalhosa.
Sua prosápia já só é má prosa.
Portugal-do-casqueiro à Europa-das-latas
manda cortiça, vinho, diplomatas.
Espera contrapartidas: sol-e-vistas
é cartaz que atrai muitos turistas.
Mas com a ameixa seca - coisa pouca! -
é que pode acordar sem amargos de boca.
Vai à mercearia e compra ameixa seca.
P'ra o intestino a ameixa é levada da breca!
(Alexandre O'Neill)
Oração
Feliz possa caminhar.
Feliz com abundantes nuvens negras possa caminhar.
Feliz com abundantes chuvas possa caminhar.
Feliz com abundantes plantas possa caminhar.
Feliz por uma senda de pólen possa caminhar.
Feliz possa caminhar.
Como aconteceu em dias distantes possa agora caminhar.
Que defronte de mim tudo seja belo.
Que atrás de mim tudo seja belo.
Que debaixo de mim tudo seja belo.
Que por cima de mim tudo seja belo.
Que derredor de mim tudo seja belo.
Belo belo acaba aqui.
Belo belo acaba aqui.
(Texto navajo, versão de Herberto Hélder. Retirado de "Rosa do Mundo. 2001 Poemas Para o Futuro", Assírio & Alvim).
Para o Pedro, meu sobrinho-neto, que nasceu ontem.
(Imagem encontrada aqui)
Leio a nota que sua filha colocou ontem no seu tão cuidado blog Ofício Diário, anunciando-nos, aos fiéis leitores, a morte de Torquato da Luz. Sabia-lhe o nome, o papel na imprensa portuguesa, em particular em tempos épicos da instauração da democracia. Mas foi nesse "Ofício Diário" que o conheci, acompanhando-o ali, onde durante anos, desde 2004, de um modo paciente, apaixonado e tão sóbrio, partilhou a sua poesia.
Sou um mau leitor de poesia, impaciente, quantas vezes buscando-lhe o rumo e mesmo desenlaces que ela não quer ter. Ou que eu não consigo descortinar. E nisso lembro agora que, há um mês, ao chegar ao "Sem drama", último poema que ali deixou, me senti retratado naquele, nada acusatório mas tão descansadamente irónico, transpirando a bonomia do homem vivido e sábio, "Poucas pessoas gostam de poesia, / embora a maioria, / como é sabido, diga que sim. / (...) / Vicejando em qualquer lado, / há quem a ponha na lapela / para o encontro aprazado. / Outros mostam-na à janela / no lugar do cortinado. / Mas, sem que nisso haja drama, / raros são decerto aqueles / que a fazem dormir com eles / noite após noite na cama". Pensei até enviar-lhe nota dessa minha sensação de retratado, "sem drama" claro. Falhei nisso, perdendo-me em demoras.
Com gentileza, que me foi até surpreendente, e que inicialmente atribuí à solidariedade no seio desta confraria bloguística, foi-me enviando os livros que ia publicando. Agradeci-lhos, com sinceridade, mas nunca me atrevi a perguntar-lhe da razão de ofertar este leitor sempre silencioso. Fiquei-me com a ideia, fico-me com ela, pois me é agradável, que fosse forma dele remeter o seu trabalho para este Maputo, o ex-Lourenço Marques, onde um dia, longínquo das quatro décadas já decorridas desde 1971-2, entrou com os seus poemas nessa espantosa, até lendária, aventura do "Caliban", revista como-se-fundacional capitaneada por António Quadros (então J.P. Grabato Dias) e Rui Knopfli. Sendo assim meio de refutar, pelo menos em parte, aquilo do "Tudo o que outrora soube e já esqueci: / os nomes, coisas, datas e lugares. / (...) / Tudo o que tive e nunca mais terei." (em "Tudo"), neste caso um seu lugar de ombrear poético.
Assim sendo, deixando-me crer nesta versão, nesta sua morte regresso ao Torquato da Luz de "Caliban", neste meu volume que um dia, abençoado seja, José Soares Martins e Nelson Saúte, abençoados sejam, decidiram reeditar e reavivar. A um Torquato da Luz invejável, capaz de deixar isto (será que o viveu?, e se sim ainda mais invejável ..., invejo-o eu, sempre estancado diante da aflição):
Apenas aflição
Apenas aflição e nada mais.
Um arrepio correndo o corpo todo.
Estar aflito é um modo
de estar com os demais.
Aflito. Como se um rio
de súbito saído do seu leito
afogasse o navio
do corpo a que estou sujeito.
Não temas. É aflito que escrevo.
Aflito realizo
ser de tudo o que vejo o dono e o servo.
Tudo o mais que preciso
é saber que me devo
um permanente aviso.
(Caliban, nº 3-4)
Adenda: também coloquei este postal no Delito de Opinião. Lá, nos comentários, Ana Vidal deixou um poema auto-retrato de Torquato da Luz. Mais do que se justifica trazê-lo para aqui:
O QUE DER E VIER
Tributário apenas da verdade,
avesso a peias e grilhetas,
feito da massa dos poetas
e dos que amam a liberdade,
sensível à dor própria e à dor alheia,
lutando até ao fim por uma ideia
de peito aberto e sem ter medo
de nada nem de ninguém,
capaz de guardar segredo
mas de o revelar também,
eis como sempre hei-de ser
para o que der e vier.
Chamo-me pássaro Pablo,ave de uma pena só,
voador na escuridão clara
e claridade confusa,
minhas asas não são vistas,
os ouvidos me retumbam
quando passo entre as árvores
ou por debaixo das tumbas
qual funesto guarda-chuva
ou como espada desnuda,
estirado como um arco
ou redondo como uma uva,
voo e voo sem saber,
ferido na noite escura,
aqueles que vão me esperar,
os que não querem meu canto,
os que me querem ver morto,
os que não sabem que chego
e não virão para vencer-me,
a sangrar-me, a retorcer-me
ou beijar minha roupa rota
pelo sibilante vento.
Por isso eu volto e vou,
voo mas não voo, mas canto:
pássaro furioso sou
da tempestade tranquila.
Pablo Neruda - O Pássaro Eu
AL (ao P por um ano de vida)
A confusão a fraude os erros cometidosA transparência perdida — o gritoQue não conseguiu atravessar o opacoO limiar e o linear perdidos
Deverá tudo passar a ser passadoComo projecto falhado e abandonadoComo papel que se atira ao cestoComo abismo fracasso não esperançaOu poderemos enfrentar e superarRecomeçar a partir da página em brancoComo escrita de poema obstinado?
Os Erros por Sophia de Mello Breyner Andresen, in "O Nome das Coisas"
AL
Estou mais perto de ti porque te amo.Os meus beijos nascem já na tua boca.Não poderei escrever teu nome com palavras.Tu estás em toda a parte e enlouqueces-me.Canto os teus olhos mas não sei do teu rosto.Quero a tua boca aberta em minha boca.E amo-te como se nunca te tivesse amadoporque tu estás em mim mas ausente de mim.Nesta noite sei apenas dos teus gestose procuro o teu corpo para além dos meus dedos.Trago as mãos distantes do teu peito.Sim, tu estás em toda a parte. Em toda a parte.Tão por dentro de mim. Tão ausente de mim.E eu estou perto de ti porque te amo.Joaquim Pessoa, in 'Os Olhos de Isa'AL
Por muito tempo achei que a ausência é falta.E lastimava, ignorante, a falta.Hoje não a lastimo.Não há falta na ausência.A ausência é um estar em mim.E sinto-a, branca, tão pegada, aconchegada nos meus braços,que rio e danço e invento exclamações alegres,porque a ausência, essa ausência assimilada,ninguém a rouba mais de mim.Carlos Drummond de Andrade in 'O Corpo'AL
Há palavras que nos beijamComo se tivessem boca.Palavras de amor, de esperança,De imenso amor, de esperança louca.Palavras nuas que beijasQuando a noite perde o rosto;Palavras que se recusamAos muros do teu desgosto.De repente coloridasEntre palavras sem cor,Esperadas inesperadasComo a poesia ou o amor.(O nome de quem se amaLetra a letra reveladoNo mármore distraídoNo papel abandonado)Palavras que nos transportamAonde a noite é mais forte,Ao silêncio dos amantesAbraçados contra a morte.Alexandre O'Neill in 'No Reino da Dinamarca'AL
Não era o seu poeta favorito, o Pablo Neruda. Dizia-o adocicado, demasiado meloso. Mas comprou uma versão bilingue da sua obra. Levávamo-la connosco nas escapadas que fazíamos e descobria sempre um qualquer poema para me ler. Gostava de ler para mim. Gostava de trocar as voltas a Neruda quando me abraçava e dizia-me baixinho: Para mi libertad bastan tus alas/Para tu corazón basta mi pecho. Sorria e beijava-me. Dizia-me “we have lost even this twilight” sempre que a geografia nos separava...
AL (para DM)
[Michael Austin - Red Dress]
Não contes do meu
vestido
que tiro pela cabeça
nem que corro os
cortinados
para uma sombra mais espessa
Deixa que feche o
anel
em redor do teu pescoço
com as minhas longas
pernas
e a sombra do meu poço
Não contes do meu
novelo
nem da roca de fiar
nem o que faço
com eles
a fim de te ouvir gritar
Maria Teresa Horta, "Segredo"
AL
[Oslo - Folhagem - Outubro 2011]
Tu és a folha de outono
voante pelo jardim.
Deixo-te a minha saudade-
a melhor parte de mim.
Certa de que tudo é vão.
Que tudo é menos que o vento,
menos que as folhas do chão...
Em Canção de Outono de Cecília Meireles
AL
Get used to opening windows wide to see what the past has done to the present, and weep quietly, quietly, lest our enemies hear broken shards clattering within us."The Tragedy of Narcissus" by Mahmoud Darwish (excerpto)
When we saw the wounds of our countryappear on our skins,we believed each word of the healers.Our ailments were so many, so deep within us,that all diagnoses proved false, each remedy useless.Now do whatever, follow each clue,accuse whomever, as much as you will,our bodies are still the same,our wounds are still open.Now tell us that we should.you tell us how to heal these wounds.“You Tell Us What to Do” by Faiz Ahmed Faiz (excerpto traduzido por Agha Shahid Ali)