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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
McLintock, um western menor de 1963, protagonizado por John Wayne, que também o co-dirigiu com Andrew V. McLaglen, um realizador algo secundário mas de linhagem, filho do oscarizado actor Victor McLaglen, habitual nos filmes de Ford e por vezes contracenando com o próprio Wayne (ganhou em 1936, em The Informer, de John Ford, e ainda foi nomeado em 1952, também em filme de Ford, The Quiet Man). Também este seu filho foi assistente de realização de Ford, e ainda que bastante activo até finais dos 80s, foi particularmente reconhecido como realizador de séries televisivas. No papel de candidato a/e futuro genro da personagem de Wayne surge o seu filho, Patrick Wayne, que com o pai fez cerca de uma dezena de filmes. O argumento é de James Edward Grant, um veterano da poda, com cinquenta filme escritos entre os 1930s e 1971, doze dos quais com/para Wayne, entre os quais “The Alamo” (1961) e “Comanchero” (1962) que este dirigiu e co-dirigiu (o segundo, com Michael Curtiz). Todas estas referências para frisar: em McLintock estamos no centro, o “gang” de Wayne convocada, e ele naturalmente a impôr-se, personagem central da indústria, amada pelo público: John Wayne, ele-mesmo como quis. Aqui numa incursão aparentemente shakespereana, pois tudo se trata de uma versão do “The Taming of the Shrew”, uma das peças iniciais do dramaturgo, assim dando-lhe “legitimidade”, se esta fosse requerida.
É uma comédia bem disposta, a despertar-me a atenção quando está tudo ao soco, uma espécie de luta na lama avant la lettre, com mulher e tudo, e que mulher ali surge Maureen O’Hara, assim tão enlameada, rojada pela pequena ribanceira. Enfim, para os tempos e para aquele meio cinéfilo, aquilo é mesmo um prenúncio proto-erótico.
Wayne é McLintock, um latifundiário (como se dizia na minha terra) decente, beberrão como deve ser, mulherengo como deve ser, rijo como deve ser, patrão amigo como deve ser, paternal como deve ser (ali a induzir um bom noivo para filha, um rapaz também ele como deve ser, representado pelo seu próprio filho, transformando o ficcional em real), justo como deve ser, anti-politiqueiro como deve ser, defensor dos índios como deve ser (se estes forem como deve ser, claro).
O filme tem tudo, não faltam os ingredientes do estereótipo, assim a tornar-se confortável, acomodatício, e fico ali divertido, rindo-me, mas também perguntando-me, "o que é que este filme tem?", e isso não tem grande explicação, para além disso do estar monopolizado pelo grande Wayne, arquétipo do comme il faut, que se lixem as modernices, o politicamente correcto. Nisso tudo até o incentivo a que o genro escolhido dê uns açoites (birrentos) à sua bela filha parece graçola, a ver se os petizes virginais o deixam de ser. Não sei se o termo germinou na altura mas o filme, algo menor, é uma espécime de Duking, Wayne himself alone.
Mais um bocado, mais umas diatribes, e vem a parte final, uma apoteose pública de humilhação da sua mulher desavinda, exigente, batida e ridicularizada diante de toda a aldeia, a população desta, homens e mulheres, em júbilo pela merecida pancada a colocar finalmente ordem nas coisas. E tudo termina com Mauren 0'Hara, finalmente açoitada em público, e assim recompensada, correndo atrás de um aliviado John Wayne, com ele definitivamente reconciliada, pois “quanto mais me bates mais gosto de ti”, como mandava a sabedoria popular, a ordem conjugal, doméstica, e assim também a pública, finalmente reposta.
O interessante não é olhar para o filme agora, através das lentes de um qualquer “politicamente correcto”, após décadas de lutas e afirmações feministas, do surgir de uma outra sensibilidade pública que refuta o tradicional “entre marido e mulher não se mete a colher”, a transformação da violência doméstica em crime público, se se falar de outra forma.
O verdadeiramente interessante é olhar esta época aparentemente tão próxima. O Duke aqui não aparece como o “Wayne negro” da sua década final, essa evolução para o não-linear, para o obscuro humano, que Scorsese aponta no seu “A personal journey through american movies” (1995). Ele está, entre os seus, resplandecente, bem disposto, hiper-jocoso, até quase falstaffiano, não fosse a saúde que transpira e a ética máscula que respira. E nisso perceber como o então topo de Hollywood podia (e queria) produzir algo assim em …1963
Deixo o filme abaixo, os cinco minutos finais são de antologia - uma antologia deste tipo de coisas.
Cresci, e a minha geração, com o desabar das paliçadas, em miúdo as da caduquez colonial, em graúdo a da "cortina de ferro" e também o calhau Voortrekker, mas já antes e durante o abanar dos castros ditos legítimos da identidade sexual, e nisso estes acima (sempre "fui" muito mais Reed do que Bowie) foram enormes agentes e tinham muito mais glamour do que os restantes. Nisto não ficou o mundo maravilha, a África toda desenvolvida, a rainbow nation um agradável country club, o leste europeu o paraíso da equidade e justiça, e a vida de todos nós totalmente descomplexada. Mas tem ficado, em tantas coisas e nestas em particular, muito melhor.
[The Rocky Horror Picture Show: filme completo aqui]
Nessas andanças de culto ficou este fabuloso, paradigmático, "Rocky Horror Picture Show", festivo e libertário. Produzido nas franjas do mainstream, e talvez por isso mais eficiente. Há décadas que ando a trautear o tu-tu-turututu do "dá lá um volta ...", quase música da minha vida, mas é aqui que estará sempre a minha "Sweet Transvestite" - e nesta minha idade já quase anciã tenho que concluir que a minha paixão de décadas pela Susan Sarandon, aqui começada e ainda hoje demencial, tem muito a ver com o ambiente "pecaminoso" provocado por esta(e) malandro(a) Tim Curry.
E depois foi passar a vida, enquanto houve fôlego, com "your hands on your hips", pois "it's just a jump to the left / and then a step to the right", pois o que realmente interessa é encontrar "algo" (alguém e/ou algo) que "really drives you insane". Como se disse neste hino:
(...)
All: Let's do the time-warp again.
Let's do the time-warp again.
Narrator: It's just a jump to the left.
All: And then a step to the right.
Narrator: Put your hands on your hips.
All: You bring your knees in tight.
But it's the pelvic thrust
That really drives you insane.
Let's do the time-warp again.
Let's do the time-warp again.
É de tudo isso que me lembro face a esta patetice que o MVF pontapeou, o travesti-barbudo que ganhou o execrável festival de cançonestismo da rede Eurovisão. Todas as gerações olham para o presente, que para elas foi futuro, com um cenho franzido, reclamando a devastação dos modos e valores, as maleitas da ética e a morte da estética. É normal. Mas não é só isso neste caso. Simpatizar com causas sociológicas ou políticas não implica aceitar ou gostar das discursatas que envolvem e dos valores que procuram produzir. Daí o meu nojo com esta actual falta de bom senso, rasteira e rasca, esta foleirice ideológica do travesti-barbudo, produzida (também) pela televisão estatal portuguesa. Se o festival da cançoneta nunca foi importante artisticamente é um traço cultural, de audiências europeias e significação comercial e política (alguém se lembra da euforia com a primeira vitória da "europeia" Israel?). A elevação desta rasquice é serviço público? O traste Castelo Branco em regime doméstico e esta aberração intelectual barbuda no "contexto europeu"?
Há algum tempo acabei um texto, externo ao bloguismo, com esta citação retirada de Isaiah Berlin sobre o pensamento voltairiano: "le bons sens, the good sense which, while it may not lead to absolute certainty, attains to a degree of verisimilitude or probability quite sufficient for human affairs, for public and private life".
É apenas isto: urge bom senso. Nisto e no restante, e tanto falta ele. Nisto e no restante tão importante. O que é ele? Já não é a era de acreditarmos que a linguagem pode reflectir cristalinamente o real. Nem que o pensamento pode ser totalmente depurado. Por isso contenta vê-lo, ao Bom Senso, como mesmo difuso, conduzindo ainda assim a nossa vida. Neste momento o bom senso é aceitar as mulheres com pilosidades, se por opção [mas resmungando, claro] ou por hipertricose. E dizer aos travestis que se barbeiem. E, fundamentalmente, exigir que o serviço público da televisão portuguesa se afaste desta merda.
A ríspida política ugandesa face à homossexualidade casa com muitos discursos no continente africano (e até em Moçambique). Contrariamente ao velho dichote europeu "acontece nas melhores famílias", em inúmeros discursos vulgares africanos a homossexualidade é remetida não para uma qualquer alteridade monstruosa ou demoníaca (como em outras paragens in illo tempore) mas, pura e simplesmente, para uma radical excentricidade, dita como algo exógeno ao continente, aos africanos. Uma perversão trazida pelos estrangeiros, transcontinentais (fundamentalmente pelos europeus).
Sob um ponto de vista antropológico isto traduz uma generalizada e antiga forma de etnocentrismo, a recusa da humanidade aos outros. Nesse âmbito a humanidade não conhece a homossexualidade, apenas a conhecem aqueles menos humanos, os longínquos outros. Num outro registo, mais político, traduz a velha ideia de que o mal vem do estrangeiro, principalmente do colono.
Na campanha contra a repressão anti-homossexual vejo agora replicado no facebook o texto "21 modalidades de homossexualidade africana tradicional", uma súmula antropológica sobre fontes de trabalhos em África realizados tanto por antropólogos de XX como de viajantes ou historiadores europeus de séculos passados.
A causa é justa, a repressão sobre a homossexualidade tem dimensões radicais em alguns países africanos e esta versão dessa realidade como "estrangeirice" é perfeitamente desconexa. Sou muito solidário com a causa, revoltam-me estas modalidades de exclusão e perseguição - ainda que, como ateu, me surpreenda as belas relações estatais, empresariais, dos mídia, turistícas e etc que as gentes das boas causas, heterossexuais e homossexuais, têm com os países que perseguem, excluem, prendem e até matam os meus companheiros descrentes na magia.
Mas este texto que as boas almas hetero/homo/bissexuais, cheios de (como sempre infernais) boas intenções, se aprestam a partilhar encanita-me. Não só pela amálgama das realidades afirmadas, aparentemente agregadas sem cuidados interpretativos. Não se trata de fazer uma crítica das "fontes historiográficas" ou das "fontes antropológicas" - para isso seria preciso ler o livro que as aborda.
Trata-se mesmo de resmungar com o artigo em causa, feito pelo jornalista Colin Stewart, no qual resume o livro "Boy-wives and female husbands", organizado por Murray e Roscoe. Termina o partilhável e partilhado artigo com a seguinte pérola, retirada do livro: nas sociedades africanas pré-coloniais (pelos menos nas que incluíam uma forte hierarquização social) as relações homossexuais eram comuns, aceites, respeitadas e codificadas. Mas depois veio o colono (o não-africano, o branco). E "What the colonisers imposed on Africa was not homosexuality “but rather intolerance of it — and systems of surveillance and regulation for suppressing it."
Ou seja, com eles veio o mal. Sobre as sociedades (a la Rousseau) tradicionais africanas, claramente tolerantes, impôs-se a perfídia estrangeira, branca, a qual veio estabelecer a intolerância, esse tal mal. Também nesta dimensão, a da sexualidade. Como nas outras.
É o mesmo raciocínio, pacóvio, daquele outro da homossexualidade ser uma exportação colonial. Apimentado com este incompetente remorso do "homem branco". Não tenho paciência para isto, um isto que nada mais é do que racismo preguiçoso, negando as complexidades e densidades, a intensidade societal africana. Ou seja, não "partilho" estes reducionismos históricos, estas "pastorais" cantando os "bons selvagens", pretinhos e, também, gays.
É via o atento FNV que chego à notícia de que na documentação oficial americana os vetustos termos "pai" e "mãe" serão abandonados, em prol dos bons termos "parent one" e "parent two" [Progenitor 1, Progenitor 2?, que melhor tradução poderá haver?] (e quem será o primeiro "Parent" e o segundo "Parent"? Maldita discriminação que aí vem.)
Não terá muito a ver mas lembro-me deste excelente livro sobre Moçambique "Nem Pai, Nem Mãe. Crítica do Parentesco: o caso macua", de Christian Geffray, uma das mais importantes obras que aborda a realidade moçambicana, do extraordinário antropólogo francês, esse que exige que sobre ele nos voltemos a debruçar. Bem comercializado ainda será um best-seller lá nos politicamente correctos ...
Resta-me ainda saber como é que os agit-props lusos vão traduzir esta novel causa. Qu'isto da crise não vai boa para o BE ...
jpt
Há alguns anos Zidane, o melhor futebolista da sua geração, supra-premiado, jogou o seu último jogo de futebol. E logo a final do campeonato do mundo, jogo que então foi o espectáculo desportivo mais visto de sempre. Já para o fim da partida, tudo empatado, macro-título por definir, a celebérrima cabeçada no morcão Materazzi.
A mim deu-me para botar isto, encantado com o heróico (quase-divino) final daquela carreira, coisa até de lenda: Tivesse eu o dom para expressar. Da grandeza que me chega em imagens. Do homem que se força a retirar pois em busca de triunfos e glórias. E que, súbito, hesita, pára, regressa, deixando-se ser, tudo o então mero resto desabando. E sendo. Mas sendo. Perceptível foi que o pirata Matterazzi invectivara o astro francês. Mas só bastante tempo depois se veio a saber o que se passara: insultara a irmã de Zidane. Magistral jogador! Maior irmão! Que interessa o título, que interessam as não sei quantas centenas de milhões de espectadores, em comparação com a querida mana?
Agora, lá na lusa pátria, os jogadores Alain e Djamal, do Sporting de Braga, andam chorosos nos jornais, queixando-se de que um outro jogador, Javi Garcia, do pérfido Benfica, lhes chamou "preto". "Aquele menino chamou-me preto", diz um, "confirmo que aquele menino me chamou preto", replica o outro. Gostaria de saber quantas vezes, dentro de campo, já lhes chamaram "filhodaputa", "corno manso" ou "paneleiro de um cabrão" (entenda-se que tudo isto reflectindo preconceitos sobre práticas ou identidades colectivas), artes que um qualquer João Pereira (Sporting) se afigura mestre, bem como tantos outros o serão [só quem nunca foi a um jogo de futebol (ou não viu uma boa transmissão televisiva) pode duvidar disso].
A ideia de que dentro de campo há insultos aceitáveis, ou dirimíveis entre jogadores (à porrada que seja), e que há outros que são motivos para choramingar nos jornais e processos disciplinares é absolutamente soez. A versão ordinária do politicamente correcto. Ou melhor, apenas o politicamente correcto. Javi Garcia insultou os jogadores do Braga? Fez bem, está visto que estes dois merecem todo e qualquer insulto. São, evidentemente, uns "pretos". Coisa que, como é óbvio, nada tem a ver com a cor da pele que cobre a merda de que são feitos. E os que os aconselham.
jpt
Só agora sigo na Tvcabo Boston Legal (e apenas para fazer esta entrada sei que a série acabou em 2008). Uma delícia, muito para além de mais-uma-série-de-advogados. Boa produção, e sobre isso passo, ainda que tenha que notar representação e diálogos. Mas o interesse vem ainda mais na forma como transpira a América de Bush, sistematicamente posta no banco dos réus e zurzida pelo nada correcto (mas hiper-contido) Alan Shore (James Spader). Série assim "liberal" casa, e de que modo, com o fantástico até misógino, supra-nada correcto, Denny Crane (o lendário William Shatner, uma espantosa revelação, grande actor). Ou seja como se pode fazer, e em plenos EUA, uma radical crítica dos pressupostos mais direitistas sem cair nas garras da intolerância puritana do "correctismo" que tanto tem azucrinado as pessoas de bem por esse mundo afora.
Depois há uma outra coisa que vale ... platina. A recuperação da amizade máscula, Alan Shore e Denny .... Crane (grande personagem) são uma parelha como as antigas. Numa era em que se deslizou da horrível homofobia para a pérfida homofilia é uma maravilha, e até uma atitude política, assistir a esta dupla, bebedora, fumadora, dois homens amigos. Homens díspares amigos. Boston Legal é (foi?) um manifesto. Elegante, nada linear.
E como não ser fan de
[Denny Crane, 6'59'']
E friso que o meu primeiro olhar para a série foi apenas por causa da recordação do velho "Caminho das Estrelas" ...
jpt
Varias mensagens de e-mail com o texto abaixo transcrito. Nao sei se correcto mas "Si non è vero, è bene trovato". E serve para a necessaria canelada, que quero dolorosa, no correctismo, essa nulidade intelectual. Diga-se que este e um caso paradigmatico sobre o vacuo esquerdalho. Brasileiro (esses da "presidenta" d'agora) ou outro. O esquerdalho "tralho", diga-se.
Tenho notado, assim como aqueles mais atentos também devem tê-lo feito,que Dilma Rousseff e seus sequazes, pretendem que ela seja a primeira presidenta do Brasil, tal como atesta toda a propaganda política veiculada pelo PT na mídia.
Presidenta???
Mas, afinal, que palavra é essa totalmente inexistente em nossa língua?Bem, vejamos:No português existem os particípios ativos como derivativos verbais.Por exemplo: o particípio ativo do verbo atacar é atacante, de pedir é pedinte, o de cantar é cantante, o de existir é existente, o de mendicar é mendicante...
Qual é o particípio ativo do verbo ser? O particípio ativo do verbo ser é ente. Aquele que é: o ente. Aquele que tem entidade.
Assim, quando queremos designar alguém com capacidade para exercer a ação que expressa um verbo, há que se adicionar à raiz verbal os sufixos ante, ente ou inte.
Portanto, à pessoa que preside é PRESIDENTE, e não "presidenta", independentemente do sexo que tenha. Se diz capela ardente,e não capela "ardenta"; se diz estudante, e não "estudanta"; se diz adolescente, e não "adolescenta"; se diz paciente, e não "pacienta".
História do Universo em Banda Desenhada, tomo I (vols. 1-7. Do Big Bang a Alexandre, o Grande), de Larry Gonick, uma edição da Gradiva de 2007 (original de 1990).
Procurei (e custou a encontrar, que a distribuição não será a melhor). Para leitura e para transferência à filial. Também acicatado, ainda que secundariamente, pela contracapa onde Terry Jones super-elogia, onde Richard Leakey recomenda e onde Carl Sagan avisa "O Volume 1 é extraordinário" (o volume 1, o primeiro de sete incluídos neste 1º tomo é dedicado à origem do cosmos, da terra e da vida). Avanço na obra, divertido e também preparando a releitura em família. Não é o livro, nem a sua fruição, o local para discutir da pertinência de uma História encerrada no velho esquema evolutivo semi-caos primitivo do paleolítico à Idade do Ferro em contexto universal, seguindo-se a Civilização(ões) da Antiguidade Clássica (não sem um amplo excurso por aqueles nómadas ou coisa que o valha que vieram a ser judeus), Grécia e Roma, Nós-próprios (um "Nós" mais ou menos amplo). Leia-se com agrado, sorriso nos lábios e pronto.
E estou eu nisto quando deparo com um absolutamente anacrónico Bachofen no século XXI. Um total disparate, em formato BD:
Ou seja, a Gradiva (com desculpa que é banda desenhada?) vende-me uma obra a cantar-me (e às visitas) o tema do matriarcado neolítico, aliado à matrilinearidade (e, já agora, ainda que em registo de sorriso, à tristeza masculina, até como se amputada, quanto ao estabelecimento dos laços de descendência por aquela via). Os "gender issues" afirmados, as feministas (e quão poderosas elas são nos EUA, pátria do livro e de coisas como estas) agradadas com essa "idade de ouro" matriarcal, os distraídos ignorantes aclamando a equação já tão antiga do matrilinear-"Amazonas". Politicamente correcta esta recuperação do Bachofen e outros (excelentes homens dos meados de XIX mas não exactamente actualizados), muito politicamente correcta. Segue-se a leitura e chegamos ao Egipto
Atentam? Egipto? África, donde negros. Séculos de imperialismo cultural europeu (orientalismo, se se quiser) conduziu a esta descoloração dos egípcios históricos. Que eram negros, convém referir, convém salvaguardar. Pois africanos. Convém portanto desenhá-los negros, redefinir a ideia generalizada que se tem sobre esse antigo povo "núbio" desnubizado, malevolamente desnubizado. [Esta página tem o delicioso desenho referente à disseminação - vá lá, ao menos foi por via real, faraónica - do nariz comprido, essa coisa aparentemente pouco africana]. De novo o tonto, ignorante, revanchista politicamente correcto (sempre mergulhado de "boas causas"). Neste caso um bouquet de afrocentrismo e matriarcado.
Assim, disfarçado em Banda Desenhada e vendido pela Gradiva. Editora que publicava bons livros nos bons velhos tempos da ... Gradiva.
jpt
Já abaixo referi que o Delito de Opinião está com um ciclo de convidados. Ontem entrou um texto de Eugénia de Vasconcellos, habitante do É Tudo Gente Morta. E é por ela que conheço esta deliciosa canção e respectiva cantora. Recomendável não só pelo embalozinho que nela vem. Mas porque a propósito de alguns assuntos que tantas palavras (e "posts") têm gerado nunca vi tão competente argumentação. E até dançável(zinha). Dá para substituir as montanhas de "files"? Trauteando a melodia (é fácil, escutem ...)?
[para os mais duros de ouvido aqui está a "letra" da canção (com tradução e tudo)]
jptTerminada a refeição peço um whisky. Recebo uma simpática negativa, um "agora já não servimos". Surpreendo-me, não havia reparado, mas é normal a contenção nestes tempos de crise. Ainda pergunto desde quando se abstêm de tal, e venho a saber que já desde Abril passado. Mas não seja por isso que me vou privar do soporífero, "e vendem?" indago com sorriso altaneiro, até presumo que arqueando a sobrancelha. Mas não, nem isso, não há mesmo bebidas destiladas disponíveis. Isso já me irrita, pois então não são meras poupanças, é intromissão. E irritado sindicalizo-me num "e na executiva, servem?!", até já me imaginando a cravar uns copos aos conhecidos que sei irem ali à frente. Que sim, diz-me o comissário, para logo avançar, até algo cúmplice, "mas para 36 lugares embarcaram 5 whiskies". Só!
É óbvio. A TAP, e nisto não irá sozinha, decidiu tomar conta dos clientes. O álcool faz mal, pelo que não se serve. Não é a "conta, peso e medida" de décadas de aviação comercial. É a tolerância zero da beatice dos tempos de hoje. E a gente, infantilizada, a aceitar que tomem conta de nós. Vergando-nos ao higienismo. Esse daqueles que sujam e estragam o que realmente conta. Como sempre é esta torpe beatice.
jptApanhei ontem os restos do programa televisivo Depois da Vida, na TVI. Ao que vi, e me explicam, tudo consiste numa senhora inglesa que fala com os espíritos desejados pelos telespectadores. No meio há uma lusófona intérprete que vai intermediando a comunicação dos caros tele-espectadores com as convocadas almas (algo) penadas.
Fico estupefacto, a licença privada para exercer actividade televisiva, obtida sob o governo do actual presidente da República Cavaco Silva, possibilita isto? Sei que os liberais defendem este ponto de vista. Pois se há consumidores para este tipo de diálogo com o outro-mundo como proibir (ou até criticar) o produto? Sei também que a pujante esquerda multiculturalista (grande parte dela acoitada nos jornais, nos blogs e nas universidades, exactamente como a rapaziada liberal) vibrará com esta pantomina - não é a comunidade crente nesta taralhouquice uma minoria cultural merecendo o apoio público e político para o exercício das suas mui dignas crenças e práticas de comunicação com o além?
Mas apesar desse apoio maioritário das "inteligências" portuguesas, à direita e à esquerda, a esta tralha multicultural ainda me interrogo. Que pensará o presidente da República do caminho que as televisões privadas assumiram desde que lhes deu licença. Afinal era para falar com os mortos? Ou por outra, estará a Presidência da República ao mesmo nível de indigência intelectual no qual vegeta a intelectualice portuguesa? Ou não está, ou seja, ainda existe e em assim sendo terá a energia para se pronunciar sobre este lixo abjecto?
jpt
Vi a Alice de Tim Burton, dita "O Chapeleiro Maluco". Também li coisas sobre o filme, uns gabam os "efeitos especiais" outros Tim Burton, indiscutível, e o actor Depp, muito do agrado das e dos espectadora/es. Daí que segue a minha opinião (abaixo o anúncio):
A qualidade do filme é ser sintomático. Se nenhum filme é etéreo há alguns que abusam no gozo com que ostentam as grilhetas que os prendem ao dia-a-dia - é o caso. Recentemente li algures um qualquer intelectual (do qual não fixei o nome) referindo-se ao filme dizendo que a obra de Lewis Carroll não é para crianças, pois estas não conseguem compreender o surrealismo que ali vai. Tosca opinião, certo que a Alice de Carroll não é só para crianças, mas também é - e ainda bem que o é, espero bem que a muitas as "alicie". E este tipo de afirmações presume a homogeneidade dos leitores, que todos compreendem uma obra da mesma forma, que esta tem apenas um nível de leitura - mas não contamos nós o "Capuchinho Vermelho" às pobres crianças, assegurados da sua candura?. E há gente que fala coisas destas e ganha a vida anunciando o que pensa ... Refiro isto pois fui ver o filme em família, pensando que o filme também era para crianças.
O fundamental do filme assenta em dois pontos:a) um emprobrecimento da imaginação. O onírico radical de Carroll é transformado num combate sanguinolento entre o bem e o mal, totalmente em contramão ao original. Ou seja, como fazer uma adaptação da obra literária? Dar-lhe sangue e porrada, quanto mais tétrico melhor (é absurda a caminhada de Alice sobre o fosso de cabeças decepadas - ainda se fosse o Russell Crowe ...). Para mais tudo isso encerrado no complexo mitológico britânico, a constante Excalibur mais a necessária morte do dragão, história incessantemente vista e contada. Uma pungente pobreza. Onde Carroll colocou densidade (até violenta) Burton põe, limitado, a intensidade (da violência física).
b) a filiação do livro ao idioma do "género" (gender). Alice é transformada numa campeã do bem, melhor dizendo numa paladina guerreira. O papel de paladino, do vencedor da hidra do momento, é tradicionalmente de um homem, o herói. Agora Alice não é apenas a protagonista, não é apenas a heroína sonhadora. É mesmo a paladina, excalibur na mão, actualização de Lancelot, ali decepando cabeças. Pura actualização, em versão "género", dos velhos mitos. Depois, saída da toca, do mundo onírico e subterrâneo, Alice recusa o "bom" casamento que lhe propõem e, muito british colonial, parte como se o jovem rapaz aventureiro de tantas outras histórias (por ex. Jim Hawkins da "Ilha do Tesouro" de Stevenson), para a distante China. Onde Carroll punha uma viagem à profundidade do "eu" (do "nós") põe Burton uma viagem ao distante exótico (do "eles", chineses). Onde Carroll punha uma menina (como complexidade do "eu" de sempre) põe Burton um unissexo (como a "lisura" do "eu" de hoje), tipo meia-estação de armazém de roupa.
Com toda a certeza (os admiradores de Depp a isso obriga) virá a sequela. Já imagino a Alice post-China, pós-colonial, que nos será oferecida. Completamente de acordo com as equidades hoje correctamente obrigatórias. Porventura retirando a única "incorrecção" deste filme - a fealdade física (ainda) associável à maldade. E muitas outras "ex-fracturantes" inovações. Verão. Depois contem-me, que já não darei para esse peditório.
jpt