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A Trégua

por jpt, em 09.10.08

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[Primo Levi, A Trégua, Teorema, 2004, tradução de José Colaço Barreiros] 

"A primeira patrulha russa chegou à vista do campo pelo meio-dia de 27 de Janeiro de 1945. ... Eram quatro soldados muito jovens a cavalo, que avançavam cautelosos, com as metralhadoras nos braços, ao longo da estrada que delimitava o campo. Quando chegaram junto do gradeamento, detiveram-se a observar, trocando entre si palavras breves e tímidas, e dirigindo os olhos tolhidos por um estranho embaraço para os cadáveres descompostos, para os barracões desconjuntados, e para nós poucos que estávamos vivos. ...

Não  saudavam, não sorriam; pareciam oprimidos, não só pela piedade, mas por uma confusa discrição, que lhes selava as bocas e prendia os olhos ao cenário fúnebre. Era a mesma vergonha bem nossa conhecida, a mesma que nos submergia a seguir às selecções, e de cada vez que nos calhava assistir ou ser submetidos a um ultraje: a vergonha que os alemães não conheceram, a que o justo sente perante o pecado cometido por outrem, e o atormenta que exista, que tenha sido introduzido inexoravelmente no mundo das coisas que existem, e que a sua boa vontade tenha sido nula ou escassa, e por isso não valeria a pena defendê-la." (8-9)

"... e no entanto a 15 de Outubro [de 1945] ... atravessámos uma nova fronteira e entrámos em Munique ... o facto de sentir pela primeira vez, debaixo dos nossos pés, um pedaço da Alemanha ... sobrepunha ao nosso cansaço um estado de espírito complexo, feito de insofrimento, de frustração e de tensão. Parecia-nos ter algo a dizer, enormes coisas a dizer, a cada alemão em separado, e que cada alemão tivesse a dizer-nos a nós ... Saberiam "eles" de Auschwitz .... Se sim, como podiam andar na rua, e voltar para casa e olhar para os filhos, passar os patamares de uma igreja? Se não, deviam, deviam sacramente ouvir e ficar a saber connosco ...

Parecia-me que cada um deveria interrogar-nos, ler-nos na cara quem éramos, e ouvir com humildade os nossos relatos. Mas ninguém nos olhava nos olhos, ninguém aceitou o desafio: estavam surdos, cegos e mudos, entrincheirados entre as suas ruínas como numa fortaleza de desconhecimento desejado, ainda fortes, ainda capazes de ódio e desprezo, ainda prisioneiros do antigo misto de soberba e de culpabilidade.

Tentativa vã e insensata: visto que não eles, mas outros, os poucos justos, responderiam em vez deles." (245-246)

"... e não cessou de me visitar ... um sonho pleno de terror ...estou de novo no Lager, e nada era verdadeiro fora do Lager. O resto era uma breve pausa, ou engano dos sentidos, sonho ... Agora este sonho interno, o sonho da paz, já acabou ... e oiço ressoar uma voz, bem conhecida; uma única palavra, não imperiosa, mas antes curta e baixinha. É a do comando da alvorada em Auschwitz, uma palavra estrangeira, temida e esperada: levantar, "Wstawac"." (249-250)

publicado às 12:06

Bálsamo?

por jpt, em 03.09.08

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"Todos descobrem, mais tarde ou mais cedo na vida, que a felicidade perfeita não é realizável, mas poucos se detêm a pensar na consideração oposta: que também uma infelicidade perfeita é, igualmente, não realizável.

Os momentos que se opõem à realização de ambos os estados-limites sao da mesma natureza: derivam da nossa condição humana, que é inimiga de tudo o que é infinito. Opõe-se-lhe o nosso sempre insuficiente conhecimento do futuro; e a isto se chama, num caso esperança; no outro, incerteza do amanhã. Opõe-se-lhe a certeza da morte, que impõe um limite a qualquer alegria, mas também a qualquer dor. Opõem-se-lhe as inevitáveis preocupações materiais, que assim como poluem qualquer felicidade duradora, também distraem assiduamente a nossa atenção da desgraça que paira sobre nós. Opõem-se-lhe as inevitáveis preocupações materiais que, assim que poluem qualquer felicidade duradoura, também distraem assiduamente a nossa atenção da desgraça que paira sobre nós, e tomam fragmentária e, por isso mesmo, suportável, a consciência dela."

Primo Levi, Se Isto é Um Homem (Teorema, 2001 [1958], tradução de Simonetta Cabrita Neto)

publicado às 03:41


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