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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Deixai os doidos governar entre comparsas!
Deixai-os declamar dos seus balcões
Sobre as praças desertas!
Deixai as frases odiosas que eles disserem,
Como morcegos à luz do Sol,
Atónitas baterem de parede em parede,
Até morrerem no ar
Que as não ouviu
Nem percutiu
À distância da multidão que partiu!
Deixai-os gritar pelos salões vazios,
Eles, os portentosos mais que os mares,
Eles, os caudalosos mais que os rios,
O medo de estar sós
Entre os milhares
De esgares
Reflectidos dos colossais
Cristais
Hilares
Que a sua grandeza lhes sonhou!
Não será um grande poema, este o de Reinaldo Ferreira, mas às vezes, muitas, é tão adequeado.
[Reinaldo Ferreira, Poemas, Lourenço Marques, Imprensa Nacional de Moçambique, 1960]
Leitor amigo na Austrália (malhas que o facebook tece) enviou-me capa (com ilustração de Diane Lidchi) desta edição original dos "Poemas" de Reinaldo Ferreira ["Mínimo sou / Mas quando ao nada empresto / a minha elementar realidade / o nada é só o resto"], aquele que Guilherme de Melo chamou “o mais europeu dos poetas portugueses acontecidos em Moçambique” - e que teve o dado biográfico, talvez apelativo para os menos dados às coisas da poesia, de ser filho do homónimo jornalista, o célebre Repórter X.
Esta edição original integrou quatro partes (Livros): "Um voo cego a nada", "Poemas Infernais", "Poemas do Natal e da Paixão de Cristo", "Dispersos". Porque póstuma acolheu vários textos enquadradores: a "Extensa Nota Explicativa" ao livro II de Fernando Ferreira, e a "Nota Explicativa" ao livro III de Victor Evaristo, que vieram a ser re-editadas. E uma introdução e notas explicativas aos Livro I e IV da autoria de Eugénio Lisboa, que lamentavelmente foram amputadas (presumo que por desacordo editorial) na edição mais recente (Vega, 1998), a qual aqui referi - a propósito da celebérrima canção "Uma Casa Portuguesa" da qual Reinaldo Ferreira foi co-autor (letrista).
Então aí deixei o meu poema preferido do livro, o "Receita para fazer um herói". Agora incluo aqui, em forma de abraço agradecido ao co-austral ma-schambiano, uma dupla do "Um voo cego a nada" (porventura o título que o poeta teria escolhido para o livro), cruelmente actuais. Um que fala do dia de sempre. E o outro que fala de tantos d'hoje, alguns até do quotidiano, arrogantemente acantonados nesses jardins blogo-internéticos ...
Eu, Rosie, eu se falasse, eu dir-te-iaQue partout, everywhere, em toda a parte,A vida égale, idêntica, the same,É sempre um esforço inútil,Um voo cego a nada.Mas dancemos, dancemosJá que temosA valsa começadaE o NadaDeve acabar-se também,Como todas as coisas.Tu pensasNas vantagens imensasDum parQue paga sem falar;Eu, nauseado e grogue,Eu penso, vê lá bem,Em Arles e na orelha do Van Gogh ...E assim entre o que eu penso e o que tu sentesA ponte que nos une - é estar ausentes.
O FUTUROAos domingos, iremos ao jardim.Entediados, em grupos familiares,Aos pares,Dando-nos aresDe pessoas invulgares,Aos domingos iremos ao jardim.Diremos, nos encontros casuaisCom outros clãs iguais,Banalidades rituais,Fundamentais.Autómatos afins,Misto de serafinsSociaisE de standardizados mandarins,Teremos preconceitos e pruridos,Produtos recebidosNa herançaDe certos caracteres adquiridos.Falaremos do tempo,Do que foi, do que já houve ...E sendo já entãoPor tradiçãoE formaçãoAntiburgueses- Solidamente antiburgueses -,Inquietos falaremosDa tormenta que passaE seus desvarios.Seremos aos domingos, no jardim,Reaccionários.jpt
[Reinaldo Ferreira, Poemas, Vega, 1998]
No meio destes últimos textos que têm evocado Amália Rodrigues, e suas passagens por Moçambique, o ABM ecoou a sua surpresa por ter agora sabido da origem laurentina da célebre canção "Uma Casa Portuguesa", da autoria de V.M. Sequeira e Artur Fonseca (música) e Reinaldo Ferreira (letra) . E esta lembrança do poeta Reinaldo Ferreira (1922-1959), que residiu em Moçambique desde 1941, trouxe-me da estante esta relativamente recente edição (1998), dita integral, da sua poesia. Amputada - por razões não explicitadas - dos textos de Eugénio Lisboa que acompanharam as primeiras edições de "Dispersos" e de "Um Voo Cego a Nada", este livro conta com um texto sobre o autor (muito de época) da autoria de Guilherme de Melo e reproduz um estudo de José Régio sobre a poesia em questão. Vale a pena ir ler este que foi, como diz Guilherme de Melo, "o mais europeu dos poetas portugueses acontecidos em Moçambique." - uma frase óptima até para fugirmos às sempre recorrentes questões das geneologias literárias e respectivas pertenças.
Deixo aquele que será o meu poema preferido do livro:Receita para Fazer um HeróiTome-se um homem,Feito de nada, como nós,E em tamanho natural.Embeba-se-lhe a carne,Lentamente,Duma certeza aguda, irracional,Intensa como o ódio ou como a fome.Depois, perto do fim,Agite-se um pendãoE toque-se um clarim.Serve-se morto.jpt