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Não sei se o texto foi publicado nesta edição do "Canal de Moçambique". Pois na prática é uma repetição de um já publicado há dois anos, ainda que o tenha refeito. Mas como agora se assinala o centenário da Primeira Guerra Mundial pensei que seria interessante regressar ao assunto em Moçambique, onde as campanhas que aconteceram no norte do país são amplamente ignoradas - apesar do "O olho de Hertzog" do João Paulo Borges Coelho, que durante elas se passa.

 

Por isso o texto enviado para o jornal para esta minha coluna bibliográfica foi esta nota de leitura sobre "Os Fantasmas do Rovuma", de Ricardo Marques, a história da I Guerra Mundial em Moçambique. Um livro que devia ser importado e divulgado, até discutido, no país. Talvez o venha a ser. Se isto ajudar ficarei todo ufano.

publicado às 20:22

Ilustração de Achille Beltrame

 

Assinala-se (não se "comemora", como alguns dizem) hoje o centenário do assassinato do herdeiro do trono do Império Austro-Húngaro, Franz Ferdinand, e da sua mulher, em Serajevo, cujas ondas de choque conduziram à primeira guerra mundial (1914-18). E ao verdadeiro fim do século XIX, disseram alguns, e da "era dos impérios" disseram (mal, em minha opinião) outros.

 

Claro que há imensa coisa escrita sobre esta guerra, talvez a mais demencial de todas - tanto pelas suas forças motrizes como, e talvez mais por isso, pela sua coreografia militar, resultante numa matança então nunca vista. Mas aqui chamo a atenção para um blog em constante actualização, dedicado à participação portuguesa, o Portugal e a I Guerra Mundial

 

Num campo mais particular constato, e com algum susto, que as novas gerações pouco ou nada sabem sobre este macro-episódio da história universal. É costume, verdadeiro ritual, um professor de antropologia aludir ao contexto do trabalho de campo (dito fundacional) de Bronislaw Malinowski na Ocêania, como enquadrado no momento da I Guerra Mundial. Acontece que os jovens não têm ideia, às vezes nem cronológica, quanto mais substantitiva, do referido. E, como corolário, aqui em Moçambique muito menos das suas implicações na história do país, naquele momento e no seu futuro.

 

Também por isso deixei duas breves notas de leitura para dois livros que penso serem importantes para a história da I Guerra Mundial em Moçambique: o muito recente e bem conseguido "Os Fantasmas do Rovuma", de Ricardo Marques (que deveria aqui ser lançado, apresentado e divulgado); e um livro magnífico, escrito por um soldado português de então e recentemente reeditado, "Kináni (Quem Vive?). Crónicas da Guerra do Norte de Moçambique", de Cardoso Mirão, um cru relato sobre aquelas campanhas, e também sobre a mentalidade e a sociologia militar de então, absolutamente imperdível (e que belo filme daria, farto-me de insistir cada vez que cruzo alguém da indústria cinematográfica). Para além de ser um espelho acurado sobre os processos sociológicos e culturais de instalação colonial. E, claro, aproveito para chamar a atenção para o "O Olho de Hertzog" de João Paulo Borges Coelho, dedicado a este momento histórico no país, razão para o irmos (re)ler agora.

 

 

 

Desse "esquecimento", amputador da percepção dos processos constitutivos da entidade nacional moçambicana, é sintomático o facto do total desconhecimento que os alunos universitários têm do significado desta estátua, a sempre referida "senhora da cobra", sita na baixa de Maputo. O único exemplar da monumentália colonial que ficou patente, e avisadamente, pois evoca também os inúmeros mortos moçambicanos - soldados e, na esmagadora maioria, carregadores - que esta guerra provocou no norte do país. Algo que subsistitu durante décadas na história oral no norte: lembro que na década de 1990, trabalhando eu no Cabo Delgado, recorrentemente os anciãos me aludiam à guerra dos "ma-germanes", situando-a, algo confusamente, na década de 1940 (óbvia associação à II Guerra Mundial).

 

Sendo assim talvez esta (maldita) "efeméride" possa servir de momento para se falar sobre estes factos aqui.

 

Das minhas parcas leituras sobre o assunto também quero realçar dois pontos: o como este processo da I Guerra Mundial portuguesa em África foi determinante no "projecto colonial" republicano, e como essa concepção (mundivisão, se se quiser) republicana transitou, como algumas outras, para a percepção que a intelectualidade socialista (entenda-se, do partido socialista português) entendeu, nas últimas décadas de XX o relacionamento dito "lusófono".

 

O segundo, completamente diverso, é um olhar sobre uma figura paradigmática, símbolo de uma "visão do mundo" de então (o oficial prussiano; ou o "junker", se se quiser), o lendário e excepcional comandante alemão, general Von-Lettow-Vorbeck. Fosse ele anglófono e muitos filmes lhe teriam sido dedicados. O seu livro "My reminiscences of East Africa" (acesso livre) é um texto sumptuoso para qualquer curioso sobre o assunto.

publicado às 13:51

[caption id="attachment_36188" align="aligncenter" width="224"] A. Moura, Expedição a Niassa e Tete, 1916, AHU[/caption]

Na sequência do aqui deixei sobre a recente publicação de Os Fantasmas do Rovuma, de Ricardo Marques, livro dedicado à história da I Guerra Mundial em Moçambique, deverá ser interessante assistir a esta conferência:

Os Arquivos das Expedições Militares a Angola e Moçambique na I Guerra Mundial: desafios e perspectivas

Por Graça Barradas, IHC-FCSH da Universidade Nova de Lisboa,

(28 de Novembro, 17.30 horas. AHU, Calçada da Boa-Hora, nº 30, Lisboa)

Comentário: Ana Paula Pires, IHC-FCSH da Universidade Nova de Lisboa

Analisa-se numa perspectiva arquivística, mas também com forte componente histórica, os arquivos dos destacamentos militares “Expedição ao Sul de Angola” e “Expedição Militar a Moçambique” durante a I Guerra Mundial (1914-1918). Estes dois arquivos, sob custódia do AHU-IICT, encontravam-se diluídos na documentação da Direcção-Geral das Colónias do Ministério das Colónias, juntamente com a documentação dos aprovisionamentos e contabilidade das referidas expedições, permanecendo, por isso, praticamente inéditos. Salienta-se aqui a importância da recuperação da estrutura orgânica dos serviços que os produziram e do seu sistema de organização, incluindo a ordem original, para entender a produção documental e reconstituir séries documentais, a fim de permitir uma recuperação eficaz da informação para diversos tipos de estudos históricos e científicos como sejam doenças tropicais, ação militar no âmbito da guerra, engenharia e infra-estruturas de comunicação, mobilidade geográfica, alimentação em campanha, prisioneiros de guerra e justiça militar.

Graça Barradas é licenciada em História da Arte e mestre em Ciências da Informação e Documentação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (2009). Actualmente é doutoranda da Facultad Ciencias de la Documentación da Universidad Complutense de Madrid e investigadora integrada do IHC-FCSH da Universidade Nova de Lisboa. Colaborou em diversos projectos de avaliação e descrição documental, encontrando-se actualmente como bolseira de investigação no projecto “Meio século de ciência colonial: olhares cruzados sobre o arquivo e a actividade científica da Comissão de Cartografia (1883-1936)” no Arquivo Histórico Ultramarino – IICT.

jpt

publicado às 10:04

Os Fantasmas do Rovuma

por jpt, em 10.10.12
O meu texto na coluna "Ao Balcão da Cantina", na edição de hoje do "Canal de Moçambique": 

Os Fantasmas do Rovuma

No início dos anos 2000s surgiu um curioso surto de turismo. 30 anos após a independência e 40 após o início da guerra que a provocou, antigos combatentes portugueses visitavam o país, em excursões que congregavam velhos “camaradas de armas”, membros das mesmas companhias, pelotões ou, pelo menos, incorporações. Muitos deles vinham acompanhados das famílias, mulheres e filhos.

Resultava isto de algum desafogo económico em Portugal, facilitando estas viagens. E também da pacificação do país, com  já algum desenvolvimento turístico do Norte, destino privilegiado dessas viagens, sempre em busca dos intensos palcos da guerra vivida, Mueda, Montepuez, tantos outros. Noutro contextos este turismo de “veteranos” é recorrente. Disso exemplo foi o surto de viagens de ex-soldados americanos ao Vietname em fins de XX. E, para os cinéfilos, bastará lembrar o celebérrimo filme de Steven Spielberg “O Resgate do Soldado Ryan” (1998), cuja acção é uma analepse (flash-back). Nela o já velho soldado Ryan, visitando com a sua família os palcos franceses da II Guerra Mundial, recorda como se salvou devido ao sacrifício dos seus camaradas. Interrogando-se se o justificara, se cumprira o terminal “make it worth it” que a personagem representada por Tom Hanks lhe dissera em agonia.

Tal como estes antigos combatentes, agora turistas, por cá enfrentando os seus fantasmas de então, desde então, sopesando o que veio no após. Buscando também onde tinham sido jovens. Mostrando às famílias onde foram, alusões ao sempre molde que é o horror da guerra. Quantas vezes buscando o encanto de África, nisso da ambivalência das memórias. E um abraço, redentor.

Foi um processo interessante, que terá passado ao lado da “pequena história”. Por cá, em período de agitados processos eleitorais, provocou algum desconforto. Rumores de Maputo anunciavam-nas como viagens organizadas de grupos de militares apoiantes da Renamo. Lembro-me de, por coincidência, ter viajado para Lisboa com um grupo destes que regressava sem ter conseguido o visto de entrada no aeroporto de Mavalane, contrariamente ao que era usual. Tristérrimos, abatidos. Bastaria olhar para aquelas dezenas de sexagenários de máquinas fotográficas a tiracolo, tantos deles acompanhados pelas suas mulheres, já avós, para entender o quão irrealistas eram os enervados rumores.

Um registo ficou deste processo. O jornalista Ricardo Marques publicou em 2005 “Moçambique. O Regresso dos Soldados”, o resultado de ter acompanhado uma dessas Maputo-Mueda em 2003. Um livro-relato, interessante memória das impressões de então cruzadas com as de hoje, tornando-o assim documento sobre a visão que os soldados tinham, e iam criando, do Moçambique onde guerreavam. E de como essa imagem se foi transformando até ao hoje. R. Marques veio com uma prosa seca, com a vantagem de procurar fugir a moralizações, saudosismos, exotismos, turistismos. Viu e ouviu os velhos soldados, transmitiu-nos o que eles viram e tornaram a ver décadas depois.

Ao autor ficou-lhe o fascínio pelo país e pelo tema. Provocado pelo “O Olho de Hertzog” de João Paulo Borges Coelho, regressa agora com o excelente “Os Fantasmas do Rovuma. A Epopeia dos Soldados Portugueses em África na I Guerra Mundial” (Oficina do Livro, 2012), um texto imperdível. Tal como fez com os últimos soldados portugueses que combateram no Rovuma acamarada com os primeiros soldados portugueses que ali combateram, caminhando pela (parca) literatura memorialista que estes deixaram e, inclusive, fazendo pesquisa sobre alguma documentação privada. Deste modo dá luz sobre este palco da I Guerra Mundial, tão esquecido.

Ignorado em Moçambique. Quantas vezes notei o total desconhecimento sobre esta guerra, a primeira guerra da “globalização” se se quiser chamar assim, e seus efeitos no país. Bastará perguntar o significado da estátua fronteira à estação dos CFM em Maputo, a sempre referida “senhora da cobra”, e deparar com o silêncio alheio. Essa que é o único exemplar dos monumentos coloniais que ficou patente, pois também invocando os milhares de mortos moçambicanos. Um palco ignorado nas cidades mas não tanto no interior nortenho. Lembro-me de em meados de 90s ouvir dos mais-velhos as confusas memórias dos horrores da guerra dos “ma-djermanes”, que diziam ter acontecido em 1940. Confusões cronológicas normais nos contextos iletrados rurais, mas mostrando o vigor dessas memórias então com mais de 70 anos.

Ignorado também em Portugal. Ainda que a participação na I Guerra Mundial ter sido vector político fundamental da I República, e ocasionada pelo projecto colonial. E que este seja tão identitário para a história nacional. Ou talvez mesmo por isso, pois regressar a esta “guerra em África”, tão sofrida e canhestra, afronta o mito benéfico da I República, produzido pelo republicanismo-socialista pós-1974.

Agora com Ricardo Marques, na sua prosa despojada, certeira, com o seu olhar clarividente e o seu ouvido atento, sentamo-nos com esses velhos soldados (e como eu aprecio, em particular, Cardoso Mirão) e ouvimos das suas desventuras, ocorridas nas expedições entre 1916 e 1918. Encetada no ataque a Quionga, terminada com as formidáveis investidas dos alemães comandados pelo mítico general Lettow-Voerbeck (e o quão significativo é não haver edição portuguesa actual das suas memórias) que cruzou até à Zambézia sem ser parado, rendendo-se aos ingleses apenas após o armistício na Europa.

Lemos a impreparação das expedições portuguesas, a falta de material apropriado, o total desconhecimento do terreno e das condições (e R. Marques nota o contraste de tudo isso com o mito dos “cinco séculos de presença”). Lemos do descomando militar e, pior ainda, do político. Lemos da corrupção dos fornecedores de material, instalados em Lourenço Marques e em Lisboa, e presumimos que bem acolitados ao poder. Lemos das marchas infindas pela floresta. Da temível sede, e da constante malária, que a tantos mataram. Lemos da fauna caçadora, atemorizando os soldados. Lemos das colunas que nunca combateram e que foram dizimadas por estas condições naturais, inesperadas, impreparadas.

Mas lemos mais, lemos de um exército de castas. Onde aos oficiais sobravam alimentos e bebidas, enquanto ombreavam com soldados que, literalmente, morriam de fome e de sede. E das desinterias provocadas pela água não potável. Lemos dos oficiais com tratamento médico e dos soldados abandonados.

E lemos, e também por isso tão interessante é este livro para o contexto moçambicano, as estratégias portuguesas e alemãs (e decerto que também as inglesas), de arregimentar carregadores, milhares de moçambicanos, bem como tropas africanas, estas a maioria dos combatentes. E das formas de tratamento a que estes, e particularmente os carregadores, estavam condenados, e do morticínio que sofreram.

“Os Fantasmas do Rovuma” é um livro muito legível, nisso simpático. Faltar-lhe-á uma impressão mais cuidada das fotografias e um mapa mais esclarecedor e minucioso, pois mesmo para quem conhece a região torna-se difícil acompanhar as errâncias dos soldados e seus combates. Com isso melhorado terá todas as condições para um sucesso internacional, após tradução. Pois vem aí o centenário da Grande Guerra!

Mas é também um precioso documento para entender as relações sociais e as relações raciais naquela época, no mundo da I república portuguesa, no mundo (ainda) da “partilha de África”. E assim sendo é um livro muito legível, nisso terrível.

jpt

publicado às 09:00

Semanário

por jpt, em 16.06.12

Publicidade Gratuita:

 

"Os Fantasmas do Rovuma", de Ricardo Marques do qual já aqui referi um bom livro. Esta recente obra (publicada pela Oficina do Livro), dedica-se à tão esquecida I Guerra Mundial em Moçambique, uma era histórica apaixonante (e terrível). Estou verdadeiramente inquieto para chegar ao livro. E, em antecipação, recomendo-o a todos. Desde que não o esgotem, claro.

 

Capa: O novo Brasil: jornalista moçambicano impedido de entrar no país. (O que é bom para a General Motors é bom para os Estados Unidos do Brasil). Ou seja, a ong moçambicana Justiça Ambiental vê barrado o seu enviado ao Brasil, provavelmente por influência dos interesses mineiros brasileiros. A "esquerda que ri", europeia ou europeízada, que dirá à presidentA?

 

Contracapa: O "velho" Brasil: o que vale a pena


Política portuguesa: o governo e seus (des)equilíbrios internos, vistos por jpp.

 

Página Internacional: o aborto na China. É uma questão que "dá pano para mangas". E dois itens particularmente interessantes, sempre esquecidos: a política demográfica do estado chinês permite aos casais das zonas rurais que tenham dois filhos se, e apenas se, o primeiro for rapariga (um défice ontológico, claro); se a família tiver quase 5000 euros pode ter um segundo filho. Imagine-se se isto fosse no Malawi ou assim o que não diriam as ongs e quejandos, a "esquerda que ri" europeia. Já para não falar nas pinças com que se tem que falar de "aborto".

 

A grecitude europeia. A demência festiva alastrará?


Sociedade: um discurso de 10 de Junho. Para quem não gosta de tralhas.


Educação: "o mais importante é estar com atenção nas aulas". Quando o calendário escolar português entra em férias convém ler uma aluna falando do ensino. E lembrar-nos do "eduquês" e dos "libertários".


Viagens:O litoral português.O Portugal rural.


Publicidade:Bom Gosto e Saúde.

 

Economia:Como estamos reféns do industrialismo.

 

Cultura:1 Filme:

 

 

Rui Knopfli, por Eugénio Lisboa.

 

 

A morte de Eddy Paape, o desenhador de Luc Orient (argumentos do magno Greg) - uma das delícias da minha juventude. Que, contristado, descubro, atrasado, via O Herdeiro de Aécio.

 

1 Canção


DesportoUm blog: o "És a Nossa Fé!". já está entre os 100 blogs mais lidos em Portugal ...

 

Um belíssimo texto sobre o Europeu de futebol.

 

1 Frase.

 

jpt

publicado às 14:48

"I spent the years 1922-7 mostly among men a little older than myself who had been through the war. They talked about it unceasingly, with horror, of course, but also with a steadily growing nostalgia."

 

[George Orwell, "My Country Right or Left", In Defence of English Cooking, 2005, p.4]

 

 

 

[Ricardo Marques, Moçambique. O Regresso dos Soldados, D. Quixote, 2005]

 

Ricardo Marques é um jornalista do Correio de Manhã, de Lisboa. Neste livro narra a sua viagem a Moçambique como acompanhante-cronista de um pequeno grupo de antigos soldados da guerra colonial/de libertação (que o nome varia conforme quem lê), um grupo heterógeneo - há notícias de outras visitas de grupos nascidos na própria guerra, antigas companhias ou regimentos. É um do Maputo ao Rovuma, melhor dizendo, do Maputo a Mueda, então palco-mor de guerra. Nele se revive o corolário da nostalgia desses antigos soldados, hoje (quase)reformados, na sua esmagadora maioria regressando pela primeira vez onde combateram na juventude. A resolução de algo que faltava, o uma vez mais, o reviver onde tiveram o medo. Talvez por isso mesmo a longa urgência desta mais uma vez, repassar onde se passara amarfanhado. Mas onde também ganharam afecto à terra, às pessoas. Essas contradições que fazem rica a vida. Para estes quase-velhos é, nota-se, uma necessidade o regresso, a visita. Uma última vez, explicitamente para muitos, implicitamente para quase todos.

 

Mas o livro é também a memória das impressões de então cruzada com as de hoje, tornando-o assim pequeno documento para entender a visão que os soldados tinham, e iam criando, do Moçambique onde guerreavam. E de como essa imagem se foi transformando até ao hoje.

 

Torna-o também interessante uma prosa seca, com a vantagem de procurar fugir a moralizações, saudosismos, exotismos, turistismos. Vai vendo e ouvindo os velhos soldados, transmite-nos o que eles viram e vêm aqui. Depois tem piada encontrar velhos conhecidos por entre o livro, o padre Lopes na ilha, ainda a falar da maldita (e horrorosa) estátua do Camões, o Simões (que se irritaria se lesse o livro), o lendário Santos de Mueda, símbolo do tasqueiro português, que vim a apanhar no Encontro e na Tasca de Pemba, agora algures em Nacala, entre outros. E assuntos que fazem a história actual, como o omnipresente boato do pagamento de pensões aos ex-soldados do exército português, coisa que durou para aí uma década e que exigiria um livro, sobre expectativas criadas e também sobre a extraordinária capacidade de reprodução de boatos.

 

Que, no fim, é um bocado superficial sobre Moçambique? Reproduzindo acriticamente algumas ideias-feitas, "a saudade de Portugal", a excelência do português sobre os dialectos? É, mas é o registo de uma viagem, uma romaria de saudade que é também catarse. Não pretende ser mais nada. Se não se for mais exigente lê-se com muito prazer. E toma-se até como fonte. Confesso que logo de início torci o nariz, o pressuposto logo ali espalhado, quase me levou a largar o livro. Apenas a gargalhada me levou a continuar, e ainda bem. Narra R. Marques (p. 42) que ele e o grupo foram abordados em busca de "ajuda": ""Lembram-se de mim?", pergunta o sujeito, de bolsa na mão. "Não", respondem os portugueses. Compreende-se, afinal está à civil. Mas o homem trabalha no aeroporto, no controlo alfandegário e, conta, "facilitou a entrada do grupo no país" há escassas quatro horas. Agora saíu do serviço. Mas não se esqueceu. "Será que me pode dar uma ajuda?". Não é corrupção, nem é esmola..."

 

O que me ri, apanharam com esta conhecidissima personagem de Maputo, sempre bem-posto, simpático, esfuziante, a apanhar os portugueses saídos do avião, sempre com a mesma história. E tantos são os anos passados que bom rendimento deve ter, ali em "ajudas" dadas pelos incautos. Folclore puro e simples, o homem devia até ser considerado atracção turística. Tomaram-no a sério, surge como imagem do estado do país. Não é, é um tipo do conto do vigário, universal. Pacífico, diga-se.

 

Criticável? Nada, Marques e os outros passaram e viram. Lido sem criticismos absurdos o livro é bem interessante. E, particularmente, para os velhos soldados.

 

Há outra coisa não tanto sobre o livro mas sobre estas viagens que se vão fazendo usuais. Aqui narra-se uma viagem em finais de 2003, por altura das eleições municipais. E faz-me lembrar o certo frisson que, diz-se, existiu no ano seguinte por alturas das eleições presidenciais e legislativas. A causa foi exactamente a série de viagens de velhos soldados nessa época. Talvez seja mero boato mas então constou que a chegada de vários grupos de excursionistas causou a impressão de movimento militar, porventura apoiante de um dos partidos em compita, e que tal teria até levantado problemas na atribuição de vistos. Repito, talvez seja apenas boato (outro), mas significa também o peso simbólico que estas viagens têm ainda. Em ambos os lados de então. Se tiver sido verdade bastaria ler um livro assim, ver as fotos, para o desengano. Memórias vivas. E, surpreendentemente (?), fraternais. Apesar da guerra que fizeram? Por causa da guerra que fizeram.

publicado às 08:48


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