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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Ao ma-schamba comecei-o há 12 anos, lá em Moçambique, não por este monopolizado mas sim dele alimentado. Anos depois juntaram-se aqui bons amigos, pela tal amizade mas também por motivos das suas atenções ao país que nos encantara, a cada um de sua maneira. A vida correu-nos e o antes tornou-se distante. E nisso, por assim, o blog foi fenecendo, injustificado até. Terminamo-lo aqui. E se começou com um excerto do grande Rui Duarte de Carvalho ficará bem terminar com um poema de Rui Knopfli, para marcos não se podia pedir mais. Ficam os agradecimentos a quem leu, aturou, gostou e/ou resmungou.
Invernal
Corre já um arrepio pela crista
de Novembro. A imprevisível surpresa
da luz de inverno é a sua agressiva
doçura horizontal. Toma-se de frio
o ombro esquerdo, a moinha persistente
espreitando o coração cansado.
Subo devagar o Mall e a luz
fere-me os olhos frontalmente, filtrada,
fina e branca, quase paralela ao solo,
como em África nunca aconteceria.
Perpendicular, fita-me de frente,
rasante ao chão como se lhe pedisse
que, por fim, me receba. Novembro,
agora pressago, Novembro, agora
sobre o ombro esquerdo, baixando,
insidioso, sobre o lado dito fatal.
- "Tufo: património cultural de Moçambique", no Buala. Um texto algo ligeiro mas interessante de Hélio Nguane sobre a dança moçambicana. Abordando, acriticamente, essa deriva actual, a da "patrimonialização" (via UNESCO) das expressões culturais, o arremedo folclorista dos dias d'hoje - que em Portugal tão bem conhecemos, do fado aos chocalhos, para não falar do inenarrável episódio do "cante" alentejano ("canto", em português padrão).
- A taxa única dos taxis no aeroporto de Lisboa, no A Origem das Espécies.
- Je suis Vilhena, no Book Loving Girls.
- O país dos outros, Rui Knopfli editado em castelhano, no Da Literatura.
- "Eu não faço parte do grupinho ACAB (All Cops are Bastards). Criticar a atitude daquele polícia e desejar que seja exemplarmente castigado não é colocar em causa a PSP – é defendê-la.", sobre o espancamento de Guimarães, no Bitaites.
- Pior era impossível, sobre os custos do marketing (eleitoralista?) da Câmara Municipal de Lisboa e da Polícia nas comemorações da vitória benfiquista, no Blasfémias.
- 1776: the revolt against austerity, on New York Review of Books Blog.
- Sobre a visão da ciência de Mariano Gago, no jornal i via De Rerum Natura. Não é para agora, só para daqui a alguns anos: Gago foi muito importante na concepção nacional da investigação, e nisso ímpar agente de desenvolvimento do país. E foi também ministro conivente com o "socialismo" craxiano que devastou o desenvolvimento do país. Como - daqui a uns anos - iremos olhar para a sua obra, se vista de modo abrangente? (Já agora: faz hoje seis meses que Sócrates está detido, esse que em pleno conselho de ministros gozava, primus inter pares, com as acusações à sua "licenciatura", dizia quem lá se sentava).
- O arquitecto do Café Majestic, no A Cidade Surpreendente, blog dedicado ao Porto, cidade de que ando a aprender a gostar.
- Who's afraid of african democracy?, no New York Review of Books Blog.
Os Lusíadas
(variações sobre um tema recorrente)
Vela parda, barca sem leme
ao leme da aventura desventurada
sobre estas praças regressamos, granito
e basalto, livro de estátuas perfiladas
à friagem do sono sem sonhos.
As chagas do tempo e da febre,
as cicatrizes da ausência e do olvido,
emprestam à madeira corroída
dos rostos uma pintura de estrangeiros.
Incómoda memória sangrada
em silêncio, através da noite perplexa,
sobre a praia original descemos.
Surda e endurecida no gosto
da cobiça, não concede a pátria
o favor que havia de acender
o engenho. E a magra tença,
se mal resguarda o corpo enfermo,
menos guarda o inverno da alma.
Em cinzas e sombra ao abismo
baixaremos: esconjuros e autos-de-fé
não logram corromper a árdua
incomburência do testemunho
que somos; mais que a fria
laje da hipocrisia, durará
o remorso desta voz enrouquecida.
(Rui Knopfli)
A distância
Ao longo da vida tenho conhecido alguns escritores, poucos. De conhecer mesmo, não “aquilo” das patéticas sessões de autógrafos, das filas intermináveis exigindo aos escribas que rabisquem os seus gatafunhos, cansados, mercantis, nos livros ali comprados. Não os persigo como tal, escritores, naquela ideia de que são como se semi-deuses, criadores sobre-homens. Conheci gente, que por acaso escreve. Há pessoas interessantes, outras nem tanto, tal como os outros, os leitores e os que não lêem. Quanto às biografias, daqueles já idos ou distantes, pura e simplesmente não as leio. Ou seja, não me são importantes as pessoas, e seus esconsos da vida, para lhes viver as obras. Certo, será assunto legítimo para os profissionais da literatura. Mas para nós, os que vamos às livrarias? Não. Nada ganho em saber se Lowry era mesmo alcoólico ou Céline maldisposto. É importante saber que livros leram Cervantes ou Dante, para entender o mundo que escreveram? Será, se apenas os sentir como documentos. Não, se temer os purgatórios de hoje ou se seguir, como sigo, qual Sancho Pança.
Vem-me isto a propósito da impressão sentida agora mesmo, ao tornar a reler “O Monhé das Cobras”, o final de Rui Knopfli. Sou fraco leitor de poesia, não me consigo erguer às profundidades a que tanta dela mergulha, e talvez por isso tanto gosto deste poeta, que narra, me deixa acompanhá-lo. Ao livro lera-o em 1997, quando “importei” umas dezenas de exemplares para aqui distribuir o que já se antevia ser uma despedida. E anos depois procurando-lhe aqueles versos resumo do meu país “… Feita de lavras / em pousio e esperança adiada, / pertencemos todos a esta áfrica lusitana / que pelas outras se expandiria. Por estas / andámos perdidos, ignorando então / que a passagem obrigava ao regresso …” (“As Origens”). Voltei agora.
Para mais uma vez me deixar amargurar, é o termo. Afinal, em contradição com o que digo, a encontrar o homem esquecendo os textos. Pois tanto ele se impõe neste seu “adeus”. Pouco sei dele, nunca questionei aqueles que o cruzaram ou estudaram. Nem ao Nelson Saúte, seu cultor, nem ao Noa, seu estudioso, nem a Zé Craveirinha, seu “verso e anverso”, nem mesmo ao “Kok Nam, o fotógrafo, baixa a Nikon / e olha-me, obliquamente, nos olhos: / Não voltas mais? Digo-lhe só que não.” (“Aeroporto”), que o acompanhou à partida, definitiva, de Moçambique.
Lembro-me de, há muitos anos, aqui receber uma bela visitante, romeira em busca dos trilhos do poeta. Só me perguntava onde era a casa do Knopfli, sabia lá eu onde era! Alguém a terá levado, lá para as bandas do Núcleo de Arte, ainda hoje não sei. Desencontrado, eu queria discutir “A Ilha de Próspero”, livro tão elogiado e de que nada gosto, apenas documento, coisa padrão, mesmo que talentosa à sua maneira, um olhar marcado e que marcou, ainda o hoje. Mas nada. Fiquei só, resmungando aquele autor, homem ali algemado no seu tempo, na sua gente, em torno das pedras e dos estereótipos, dos velhos típicos, das belas mulheres, com msiro ainda por cima, uns belos e jovens seios a precisarem das jóias locais, como se não suficientes em-si. O poeta a olhar os restos de uma ilha construída por “mouros embarcadiços, ali fugidos aos negros canibais do Continente”, como ainda deixou Alexandre Lobato apresentá-la, e já naqueles anos 1970s! Um homem a ir até à “Ponta da Ilha” para olhar “telhados de macute que se repetem / sempre iguais, ruelas de terra batida / entrelaçadas em labirinto rústico” e deixar-nos três, notei sempre, apenas três fotografias tiradas cá de cima, da avenida central. Todas as barreiras ao olhar, brilhantes sob o sol da mito “muipiti”.
Era isso que me brotava, o meu resmungo diante daquele “Próspero e Caliban”, a rasa leitura de que veio a brotar a lendária revista “Caliban” do Lourenço Marques de 70s, e que um dia mais tarde o Nelson e o Soares Martins vieram a reimprimir. Rasa leitura porque a empobrecer Shakespeare, como se este ali narrasse o mero mundo, ecoando-o, e não a desvendá-lo. A dizer esta “tormenta” da coexistência da “magia branca” e “magia negra”, do curandeiro e do feiticeiro, ainda para mais coisa tão sabida do Rovuma ao Maputo, ideia tão à mão de semear, bastaria ter os olhos para ouvir.
Um meu resmungo diante de um Shakespeare de cardápio, a deixar fugir a ideia central, de que se caliban é colonizado por próspero, é-o pois colonizado pela razão. Por uma razão que não é boa, apenas a fúria e o orgulho quando comedidos. Por isso o elogio exótico, o “generoso” paternalismo de Knopfli do “Não são estes os filhos de Caliban” (“Canção de Ariel”). Incompreendendo que as gentes da Ilha são os filhos do boçal e horrível Caliban. Porque todos nós somos caliban e próspero, é essa a nossa “tormenta”, o “outro” está cá dentro, melhor dizendo o “outro” é o mesmo. Pois é disso que se trata, não da refracção da política e da geografia.
E desses pólos, pobres, afinal não saiu o poeta. Por isso, homem do meio, sem o ter percebido como, se foi num “não voltarei, mas ficarei sempre”. Há pouco, em tarde de cafés longos, perguntei a quem sabe daqueles tempos, “o que é aconteceu com o Knopfli?”. Que “foram vocês que o mandaram embora” veio a resposta, a surpreender-me, qualquer coisa decidida pelo então Alto-Comissário. Será verdade? Uma delas, pelo menos, muito a aconchegar esta incompreensão que lhe brota dos textos, e a dourar um mito, sereno, poético, a continuar.
Depois a república não o tratou mal, enviou-o com serenidade para Londres, o centro do mundo. E é isso que tanto angustia nestas visitas ao terminal “O Monhé das Cobras”. Que o homem, saído da sua Inhambane, desgarrado da sua Lourenço Marques, se findou a escrever sobre a “rua de coolela”, sem nunca ter encontrado naquela urbe, brutal, milionária de sons e tons, ainda que enublada, um qualquer encantador de cobras a quem se dedicar.
Leio Knopfli e vejo a distância. A dele. Para com o onde estava, para com o para onde foi. E vejo-o símbolo, da história de tantos dos meus patrícios. Do meu país. A não olhar(em) a urbe. E pesadelo. Na minha história.
É importante conhecer a vida dos escritores? Afinal … é.
jpt
João Melo, que é um amigo do ma-schamba já desde "os tempos", mandou para o grupo ma-schamba no facebook esta sua fotografia "mangas verdes, só falta o sal ...". Eu confesso que sou empedernido, gosto muito mais de blogs do que do facebook - e se as conversas, amenas, se deslocaram para lá pelo menos que as imagens venham para cá, quando significarem algo para o que vamos blogando. Acontece que estava a escrever um textito (também) sobre o Rui Knopfli, a publicar no Canal de Moçambique de amanhã. E já que isto das "mangas verdes" virou canónica referência ao poeta aqui deixo o seu (polissémico?) poema a este propósito
Mangas verdes com sal
Sabor longínquo, sabor acre da infância a canivete repartida no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída no instante desprevenido, na maré-baixa, no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retoma devagar ao palato amargo, à boca ardida, à crista do tempo, ao meio da vida.
[Rui Knopfli, "Mangas Verdes com Sal", Lourenço Marques, Minerva Central, 1972, 2ª edição]jpt
["Rio Zambeze (AL)"]
Quem somos, senão o que imperfeitamente
sabemos de um passado de vultos
mal recortados na neblina opaca,
imprecisos rostos mentidos nas páginas
antigas de tomos cujas palavras
não são, de certo, as proferidas,
ou reproduzem sequer actos e gestos
cometidos. Ergue-se a lâmina:
metal e terra conhecem o sangue
em fronteiras e destinos pouco
a pouco corrigidos na memória
indecifrável das areias.
A lápide, que nomeia, não descreve
e a história que o historia,
eco vário e distorcido, é já
diversa e a si própria se entretece
na mortalha de conjecturados perfis.
Amanhã seremos outros. Por ora
nada somos senão o imperfeito
limbo da legenda que seremos.
Rui Knopfli - Quem somos
Preciso ser um outro
para ser eu mesmo
Sou grão de rocha
Sou o vento que a desgasta
Sou pólen sem insecto
Sou areia sustentando
o sexo das árvores
Existo onde me desconheço
aguardando pelo meu passado
ansiando a esperança do futuro
No mundo que combato morro
no mundo por que luto nasço
Mia Couto - Identidade
AL
Ilha de Moçambique: o verso ...
Muipíti
Ilha, velha ilha, metal remanchado, / minha paixão adolescente, / que doloridas lembranças do tempo / em que, do alto do minarete, /Alah - o grande sacana! - sorria / aos tímidos versos bem comportados / que eu te fazia. / Eis-te, cartaz, convertida em puta histórica, / minha pachacha pseudo-orientala rescender a canela e açafrão, / maquilhada de espesso m'siroe a mimar, pró turismo labrego, / trejeitos torpes de cortesã decrépita. / Meu Sitting Bull de carapinha e cofió, / têm-te de cócoras na sopa melancólica / de uma arena limosa e marinha, / gaivota tonta a adejar inutilmente / ao lume de água contra a amarra / que te cinje para sempre / ao bojo ventrudo do continente. / De teu, cultivam-te a vénia e a submissão / solícitas, trazidas nos pangaios / lá do distante Katiavar, / expondo-te apenas no que tens de vil, / razão talvez para que ao longe, de troça, / pisquem mortiças as luzes do Mossuril / ou sangre no meu peito esta mágoa incurável. / Mas retomo devagarinho as tuas ruas vagarosas, / caminhos sempre abertos para o mar, / brancos e amarelos filigranados / de tempo e sal, uma lentura / brâmane (ou muçulmana) durando no ar, / no sangue, ou no modo oblíquo como o sol / tomba sobre as coisas ferindo-as de mansinho / com a luz da eternidade. / Primeiro a ternura da mão que modulou / esta parede emprestando-lhe a curva hesitante / de uma carícia tosca mas porfiada / logo o cheiro a sândalo, o madeiramento / corroído da porta súbito entreaberta, / o refulgir da prata na sombra mais densa: / assim descubro subtil e cúmplice, / que a dura linha do teu perfil autêntico / te vai, aos poucos, fissurando a máscara.
[Rui Knopfli]
... e o anverso?
Muhípiti
É onde deponho todas as armas. Uma palmeira / harmonizando-nos o sonho. A sombra. / Onde eu mesmo estou. Devagar e nu. Sobre / as ondas eternas. Onde nunca fui e os anjos / brincam aos barcos com livros como mãos. / Onde comemos o acidulado último gomo / das retóricas inúteis. É onde somos inúteis. / Puros objectos naturais. Uma palmeira / de missangas com o sol. Cantando. / Onde na noite a Ilha recolhe todos os istmo / se marulham as vozes. A estatuária nas virilhas. / Golfando. Maconde não petrificada. / É onde estou neste poema e nunca fui. / O teu nome que grito a rir do nome. / Do meu nome anulado. As vozes que te anunciam. / E me perco. E estou nu. Devagar. Dentro do corpo. / Uma palmeira abrindo-se para o silêncio. / É onde sei a maxila que sangra. Onde os leopardos / naufragam. O tempo. O cigarro a metralhar / nos pulmões. A terra empapada. Golfando. Vermelha. / É onde me confundo de ti. Um menino vergado / ao peso de ser homem. Uma palmeira em azul / humedecido sobre a fonte. A memória do infinito. / O repouso que a si mesmo interroga. Ouve./ A ronda e nenhum avião partiu. É onde estamos. / Onde os pássaros são pássaros e tu dormes. / E eu vagueio em soluços de sílabas. Onde / Fujo deste poema. Uma palmeira de fogo. / Na Ilha. Incendiando-nos o nome.
[Luís Carlos Patraquim]
"...Para quêquerer incendiar os astros se, dentro de nós,ainda não acendemos todas as luzes"(Rui Knopfli, Ars Poética, Mangas Verdes com Sal)
José Craveirinha comemoraria hoje o seu 82º aniversário. Aqui fica a memória. Ilustrada por um pequeno livro, que acarinho, em que se recolhem algumas das suas crónicas de jornal, casadas com as contemporâneas de Rui Knopfli, um "verso e anverso" desses irmãos de letras inventado pelo António Sopa: "Contacto e outras Crónicas" + "A Seca e outros textos".
No final dos anos 40 o então jovem Zé Craveirinha escrevia, com um tom muito da época, coisas de sempre:
"O movimento que se deseja efectuar-se-á ...quando o homem de cor intelectualmente preparado não desdenhar acintosamente o influxo de correntes culturais de origem africana, num sonambulismo ignaro que se vem prolongando demasiado. ... Trata-se muito simplesmente de não abdicar de uma cultura indígena, nem renegar uma corrente europeia, quando de tal enxerto pode surgir uma beneficiação integral..." (8-9)
Em Maio blogs mil foi o que foi ... assinale-se o primeiro aniversário à sombra dos palmares, que antologia já é.
Que começou e continuou assim:
(...)Teu olhar tem a curvatura
terna e feroz de uma grande-angular.
Esse perfil distante de cimento
e argamassa é toda uma geometria
decantada e gostosa molhando os quadris
deleitados no charco doce da baía.
Diacho, que perfil mais bonito, hem?
Então, Rui, que é isso,não vais agora comover-te?
(Rui Knopfli)