Saltar para: Posts [1], Pesquisa e Arquivos [2]



Hoje, em Lisboa, sobre África

por jpt, em 24.11.12

 

Para quem está em Lisboa, no frio, hoje na Gulbenkian. A mim chama-me a atenção, para além do Elísio Macamo (sempre recordando que foi um belo bloguista) a atenção sobre o Kapuscinski. Não sei o que se dirá. Mas surpreende-me tamanha atenção, e até apreço, por esse chato exotizador, entre vários defeitos, e até piores, num contexto histórico-intelectual que tanto pontapeou e pontapeia os olhares dos antropólogos em África que dele eram contemporâneos. Que, na sua esmagadora maioria, faziam com naturalidade e já sem alarde aquilo de "participar" (a gente sabe o que significa) no contexto local, isso que o polaco andou a sonorizar durante décadas. E que escreviam mais, melhor e percebiam tão mais. Ainda que podendo partilhar alguns dos factores de miopia e de estigmatismo. Mas com melhores óculos.

 

Ou, como diz a sinopse do programa: "Mas uma frase como «Acima de tudo salta à vista a luminosidade. Luz por toda a parte. Claridade por toda a parte. Sol por toda a parte», com que inicia a sua obra Ébano, é um modo único de afirmar África.". Como se fosse necessário dizer um tontice destas, imune ao real, por exemplo à noite, para rodear o gigantesco e marcante "Heart of Darkness".

 

jpt

publicado às 11:58

Ryszard Kapuscinski em Angola

por jpt, em 18.08.08

capa-kapu.jpg


Ryszard Kapuscinski, Another Day of Life (Penguin, 2001 [edição polaca de 1976]) é o relato da estadia do autor em Angola entre Setembro e Novembro de 1975, o fim da colónia, o começo do país. Acompanhando o êxodo português e o (re)começo da guerra. Uma grande reportagem em livro precioso.

 

Repórter empenhado, tanto isso se nota no tom e nas previsões do seu tempo, a parte muito datada do texto: a FNLA é apresentada como constituída por canibais, dela se ouve a voz de um soldado (aprisionado) lamentando-se enganado por promessas de futura bolsa de estudos e, já, sabedor do errado em alinhar com tal movimento. O MPLA é a "república", os movimentos outros são invasores. Os portugueses são narrados em tons crus ainda que, no fim, louvados por terem ajudado o MPLA - a abertura in extremis do aeroporto para as tropas cubanas. E a estadia que termina com uma visita, cortesia de admirador, a Agostinho Neto, o poeta, ali citado, e pelo repórter tratado com pinças - pois apenas saudado, não questionado - "para não o magoar", um triste episódio, até cândido na sua explicitação, onde Kapuscinski intervala o seu jornalismo, abandona qualquer tino. [Não deixa de ser engraçado ver a narrativa da sua viagem com a militantíssima equipa da RTP, de Luís Alberto Ferreira, ferrenha MPLA. E queixamo-nos nós hoje em dia da falta de objectividade ...].

 

Tudo isto será coisa do seu tempo, historicamente compreensível. Não tanto o seu posfácio, de 2000, com uma pequena cronologia, comentado do percurso angolano: "Has anything changed? Unfornately, not much. Yes, the Cubans have departed. As have the South Africans. But the Angolans are still there - it is their country: a country divided, torn apart, ruined by civil war, whose central government has been consumed for three decades by the rebellion of Jonas Savimbi" (147). Lá de longe, passando as décadas, Kapuscinski não mudou o seu olhar. Mudou o mundo, tanto se desvendou. Mas nada disso aqui se ecoa, nada disse ele mostra ter registado.

 

Sabe-se que o autor é louvado pelo seu conhecimento de África e pelo seu particular olhar. The Shadow of the Sun ganhou-lhe essa fama. Muito pela verve, respeitável, mas também pela abordagem, o (muito a la antropólogo, já agora) modelo de "europeu entre africanos", recusando os nichos dos "brancos em África", nesse seu conforto apartados do real e do seu entendimento, evitando a apreensão da África sobre a qual apenas perpassam. Também por isso, por essa sua fama, seria suposto o leitor surpreender-se com coisas como "The Bantu language has no future tense; the concept of the future doesn't exist for the Bantu people, they are not tormented by the thought of what will hapen in a month, in a year" (103) - e eu regresso ao pobre jovem FNLA aprisionado, aterrorizado numa guerra na qual se alistou em troca de uma possibilidade de estudar. No futuro. Não seria bantu? Ou será que, afinal, Kapuscinski percebe pouco? Ou será que, afinal, Kapuscinski não é Kapuscinski?

 

É esta metade da sensação que me provoca este Another Day of Life. A constatação de que a empiria nem sempre aclara, a desilusão do preconceito presente, por melhor que seja o estilo. Sobrevalorizado Kapuscinkski? Sempre me pareceu, um pouco apenas a auréola do andarilho - o "on the road in Africa" diverso daquele "once I had a farm in Africa" que tanto encanta outras sensibilidades.  É isso, a cada leitor o seu sonho, o seu éxotico ... Mas, acima de tudo, o autor será sobrevalorizável, alcandorável, na comparação com o habitual  discurso pueril europeu sobre os contextos africanos.

 

Mas há outra metade da sensação provocada pelo livro. A capacidade de observação (observar não é entender, nem sempre) do autor, e a bela prosa. Um aeroporto em pânico "acolhendo" a população colona em desespero, a barbuda e licenciosa tropa portuguesa auto-demitida e, de antologia, uma Luanda metida em contentores, páginas antológicas sobre a descolonização portuguesa:

 

"Everybody was busy building crates. Mountains of boards and plywood were brought in. The price of hammers and nails soared. Crates were the main topic of conversation - how to build them, what was the best thing to reinforce them with. Self-proclaimed experts, crate specialists, homegrown architects of cratery, masters of crate styles, crate schools, and crate fashions appeared. Inside the Luanda of concrete and bricks a new wooden city began to rise. The streets I walked through resembled a great building site. I stumbled over discarded planks; nails sticking out of beams ripped my shirt. Some crates were as big as vacation cottages, because a hierarchy of crate status had suddenly come into being. The richer the people, the bigger the crates they erected. Crates belonging to millionaires were impressive; beamed and lined with sailcloth, they had solid, elegant walls made of the most expensive grades of tropical wood, with the rings and knots cut and polished like antiques (...)


The crates of the poor are inferior on several counts. They are smaller, often downright diminutive, and unsightly. They can't compete in quality; their workmanship leaves a great deal to be desired. While the wealthy can employ master cabinetmakers, the poor have to knock their crates together with their own hands. For materials they used odds and ends from the lumber yard, mill ends, warped beams, cracked plywood, all the leftovers you can pick up thirdhand. Many are made of hammered tin, taken from olive-oil cans, old signs, and rusty billboards; they look like the tumbledown slums of the African quarters. (...)

 

Thanks to the abundance of wood that has collected here in Luanda, this dusty desert city nearly devoid of trees now smells like a flourishing forest. It's as if the forest had suddenly taken root in the streets, the squares, and the plazas" (13-16)

 

E depois a guerra, uma frente sul incognoscível, indetectável de tão mutável e porosa, a qual narra o autor até à fronteira. O ambiente de espera aquando da batalha de Luanda, angustiante (talvez premonitório de outros desesperos): "Oscar, who had been at the limits of his strenght, now drunk, called out in despair, "If this is what independence is like, I'll blow my brains out!" (122). Mais do que tudo nessas andanças narrando locais e captando uma galeria de homens, estupenda, vibrante, combatentes ou sofredores, até heróicos no seu desprendimento quotidiano, quase como se tudo aquilo fosse, afinal, normal. Aí a grandeza do livro, da escrita do autor, como nos apaixona em meia dúzia de linhas por essa gente que cruza.

 

Termina a narração com a retirada sul-africana, uma cena épica, visitável, imaginável: "Pieter Botha ... passes his army in review as it returns from war across the border bridge over the Cunene River. Although the soldiers cross the bridge in silence, there is a lot of shouting and screaming in the vicinity, since at the same time the FNLA and UNITA units that until that moment had accompanied the white South Africans soldiers are throwing themselves into the river en masse and splashing across towards Namibia. Many drown in crossing. But the war has ended, the democracy of the front has ended; and the law of segregation applies again: Passage across the bridge is for whites only" (147)*. Um mundo em estertor, esse que ainda teria quase três décadas.

 

Kapucinski é zarolho? É! Mas um belíssimo zarolho ...

 

*Adenda posterior: Ana Leão aflorou aqui a história do Batalhão 32, um batalhão misto com tropas angolanas e sul-africanas. Uma história algo mais complexa do que o episódio narrado por Kapuscinski, uma excepção ao acontecido. Ainda há algum tempo falei, e através da AL, com uma investigadora que trabalhou sobre este tema. E lembrava ela que nessa retirada de Angola o governo de Pretória deu ordens para vedar às tropas angolanas (FNLA e UNITA) a passagem da fronteira, abandonando-as à sua sorte. Na altura o coronel Jan Breytenbach, comandante do Batalhão 32 e seu fundador, negou-se às ordens de recuo (um caso gravíssimo de indisciplina militar) e ficou com os seus homens, sul-africanos e angolanos, do lado norte da fronteira. Até que houvesse permissão para que os soldados angolanos pudessem recuar para além da fronteira. Algo que veio a acontecer.

 

A história tem um epílogo supra-significante, ao que me contaram (e nada mais sei sobre o acontecido). Passadas décadas, já neste século, o entretanto retirado Breytenbach (reformou-se em 1987, depois de uma agitada, até mítica, carreira militar) precisou de fazer uma delicada operação médica. Fê-la num hospital privado em Cape Town, paga por uma colecta de militares angolanos, oficiais superiores ao que soube. E, ainda no hospital, recebeu a visita de uma delegação de generais angolanos, idos para o saudar, "desejar as melhoras". Penso que aqui se denota algo mais do que a tradicional solidariedade entre militares, tão típica entre velhos inimigos, e do respeito por um militar até lendário. Mas também o reconhecimento de quem recusou participar naquele abandono.

publicado às 01:01


Bloguistas







Tags

Todos os Assuntos