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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Logo após a inauguração da exposição "Na Arte é Necessário Aventurar", a primeira acção que lhe foi dedicada após a sua morte, acaba de ser aberta a página Facebook sobre Shikhani. Pode-se dizer que o movimento começou, ocasião para quem não conhece a sua obra sobre ela se debruçar. E para quem conhece a ela regressar. E momento para que os admiradores se congreguem. Para fruir. E divulgar.
jpt
[Inauguração da Exposição "Na arte é preciso aventurar", de Shikhani. Fotografia de Carolina Pimentel Teixeira]
Foi inaugurada ontem, no consulado-geral de Portugal (Av. Mao-Tse-Tung). Concorrida, como mostra acima se mostra. Fazendo notar que há gente interessada na obra e na memória de Shikhani. Faisal tocou. Sitoe e Alda Costa aludiram ao pintor. A colecção mostrada, fundamentalmente constituída por obras de meados da década de 1990, é muito interessante. Parcelar, claro, mas verdadeiramente interessante (e invejável).
jpt (volante e texto) e cpt (telefone e fotografia)
Há algum tempo aqui deixei um texto sobre Shikhani. Porque é o meu artista moçambicano preferido, coisa subjectiva e que me é indiscutível. Mas também pelo meu espanto diante do total silêncio e inactividade que se seguiu à sua morte, acontecida no último dia de 2010. Injustificáveis. Não falo das homenagens, das proclamações de heroísmos ou genialidades. Apenas do regresso (ou ingresso) à sua obra. Exposições, textos, audiovisual, testemunhos. Nada. Para quem esteja minimamente interessado nas artes visuais em Moçambique todo este apagamento deveria parecer absurdo. A mim parece-me.
Também por isso o meu agrado com esta exposição que amanhã inaugura no Consulado-Geral de Portugal, duas dezenas de obras de Shikhani, realizadas durante a década de 90, e propriedade de um coleccionador, um português actualmente residente no Zimbabué. A iniciativa é da cônsul-geral de Portugal em Maputo, inestimável "servidora pública" (uma mulher que entende o funcionalismo público como "serviço público", pessoa que não sendo única é verdadeiramente rara).
Não será o consulado de Portugal (na Mao-Tse-Tung) o local ideal para o regresso de Shikhani aos olhares dos que o apreciam, e para sua apresentação aos muitos que o desconhecem. Não o será devido à exiguidade das instalações que o vão acolher. A qual no entanto é ultrapassada pela grandeza do serviço cultural que ali vem decorrendo, entendido como motor de inter-conhecimento. Ainda para mais em sítio tradicionalmente associado a barreiras e dificuldades, a estranhezas, coisas da burocracia. Agora, assim, sítio votado a entranhezas.
Regressar a Shikhani é suficiente. Não deve ser aproveitado para derivações outras. Mas é-me impossível, aliás, recuso-me a evitar o comentário, até paralelo. Ver o consulado-geral de Portugal avançar por iniciativa própria, sem meios humanos ou financeiros particulares nem mesmo as condições suficientes, apenas contando com o interesse e a energia próprios, para esta fundamental acção, demonstra o vazio de propósitos, de energias, de interesses, de intelecto, que os serviços culturais do nosso país vêm apresentando em Moçambique. Uma máquina até pesada, mas inerte e inane.
E neste cruzamento de realizações ao olhar o funcionalismo público (que não o "serviço público) pátrio presumo que isso implique custos, nocivos. Não aos que vegetam. Sim aos que fazem. Que me engane ...
Quanto às instituições culturais moçambicanas, estatais ou civis, que poderei eu dizer? A minha excentricidade face a elas impede-me a indignação que sinto ao olhar os meus patrícios vegetativos. Mas com toda a certeza que espero que esta exposição, muito parcelar, sobre Shikhani obrigue, provoque, a uma necessária atenção a um dos grandes da terra. Um regresso.
Abaixo reproduzo alguns textos (pressionando-os aumentam) que acompanham o desdobrável realizado para a exposição: fotografia do nosso PSB, excertos de Adelino Timóteo e meu; textos de Maria Pinto de Sá e de Graça Gonçalves Pereira.
Amanhã, segunda-feira, 7 de Novembro, pelas 18 horas, na Mao-Tse-Tung. Dia e hora de Shikhani. E durante as semanas seguintes. Vão ver.
["Shikhani, 28.9.2007; Foto de Pedro Sá da Bandeira"]
Neste ano após-Shikhani
O ano 11 do século começou exactamente na véspera. Preparavam-se as libações apropriadas ao rejuvenescimento do calendário, espraiados ao sol, acalentados pela festa da continuidade que se aproximava, quando tudo foi interrompido, enublado. Os sms, esses tantans de agora, anunciavam, cruzando o país: “Shikhani morreu!”.
O areal onde recebi a nova tem Maputo como horizonte, longínquo como este sempre o é, mas assim de súbito tornado ainda mais inalcançável. E tudo me surgiu como simbólico. O ali estar, defonte à sua cidade agora feita túmulo. A data, fim-de-ano , sempre dada a rescaldos, as contas do deve e haver de cada um. Estas a acusarem-me de não o ter procurado, acompanhado, desculpando-me por não querer perturbar a intimidade alheia. Soube ali que tendo ele perdido a vida desperdiçara eu próprio um pouco da minha, ao não o ter demandado, perguntando sobre aquele seu mundo encantatório, assim deste aprendendo algo mais. E, mais importante, nele fruindo.
Mais tarde, naquela noite, quando nós os vivos comemorávamos este estar vivos, brindei sozinho ao velho que acabara – não sou religioso, a morte é o fim. Fica a memória, sim, mas nos outros, para estes a usarem. A minha memória de Shikhani, o meu artista moçambicano preferido, que dela fazer?, foi esse o meu brinde, meu compromisso comigo mesmo.
Recordo-o com enleio quando, ainda eu recém-chegado a Maputo, fui até Shikhani, então num flat à Samora Machel, um verdadeiro “jardim suspenso”, pejado de pinturas e desenhos. Ali me perdi, em espanto e encanto. Logo agendámos outro encontro, coisa de eu querer ver mais e com mais atenção, e também para preparar uma exposição, que até veio a acontecer. Nesse outro dia fui à casa do bairro do aeroporto, para onde Shikhani se estava ainda a mudar – “e onde há mais luz para ver” disse-me. No quintal, ao sol, foi-me abrindo o baú, dezenas das suas “coisas”, como as declarava, naquela sua voz pastosa, numa placidez até irónica, cruzada por laivos de sorriso que transformavam o seu corpo enorme em quase-criança.
Estava eu absorto no seio das pinturas quando Shikhani anunciou que tinha mais umas obras, e foi buscá-las, para logo surgir com as suas esculturas, arte que eu lhe desconhecia. Foi um embate, o maior que tive no país. Sempre recordo que depois dei comigo sentado num pequeno banco, sem ter reparado como ali chegara, manuseando tudo aquilo que se me desvendava. “De onde lhe vem isto, mestre?”, perguntei, e fui perguntando, ingénuo, como se tal seja coisa que se pergunte. Um cosmos pré-colombiano, passei a dizer, pobre de expressões, a todos aqueles a quem falava, ininterruptamente, de Shikhani. Para tentar expressar a sua radical originalidade, densa, abissal, labiríntica, imersa num frenesim de sentidos.
Foram essas memórias e a de outros breves contactos que com ele tive, mas também dos meus diálogos com a meia dúzia de peças dele que vim a possuir, que me acorreram naquele início de 11. Acabrunhando-me, como sempre a morte o faz? Sim, mas também felicitando-me o acaso da vida, este de o ter encontrado um pouco. E assim que fazer agora, para agradecer essa fortuna?, foi também o meu primeiro sono do ano.
Nem uma semana passara, já cruzara eu a baía de retorno a casa, e de novo soou o SMS-tantan, foi Idasse na alvorada a avisar: “Malangatana morreu!”. O ano começava, trágico, com esta razia nas personagens centrais do país. Pérfida coincidência, disse eu, o racionalista descrente em destinos. Conterrâneos, contemporâneos, colegas, parentes, tanta afinidade entre ambos veio desembocar na mesma foz de tempo.
A morte do velho mestre, o sempre aclamado Malangatana, logo fez explodir a comoção nacional. Pela sua grandeza, homem “maior do que a vida”, feito símbolo do país. Pela sua primazia, verdadeiro apropriador da modernidade no país, e dela reprodutor, incansável disseminador. Pelo seu atrevimento, de tudo tentar, tudo reclamar, tudo agir, no afã de recriar. E porque na sua obra pictórica, às vezes esquecida nas loas que lhe tecem(os), ter convocado para este nosso presente o passado e futuro do seu cosmos, assim tornando-os presente, um presente supra-preenchido, fortaleza de tantas forças, às vezes inebriado – fazendo-me lembrar, europeu que sou, o antepassado Bosch -, outras vezes terrivelmente doloroso. Explícito. E assim, no seu reclamado atrevimento e no seu mundo pintado, Malangantana surgiu aos olhos dos compatriotas o moldador da identidade comum, fez-se princípio.
Mas fez-se também como se tudo. E esse seu viver voraz foi-o também na morte, como se tudo se apagando em seu torno. Deixando-me assim com este luto, amargo, que desde então ocorre. No qual caminho, no mesmo areal daquele último dia antes de 11. Que fazer com o “meu” Shikhani? Esse das esculturas excêntricas, disformes, desordenando a ordem humana. Dos constantes labirintos, às vezes até figurativos outras apenas eles. Do doloroso despojamento, naquelas frenéticas inconclusões disfarçadas de meros passeios geométricos. Eu sigo a olhá-lo como um nosso desvendar. Dos abismos aos quais pertencemos. Dos implícitos. A identidade, afinal. Sem fronteiras. A dos homens.
Quando terei, e quando teremos, a coragem de voltar a Shikhani?
jpt e PSB (texto e fotografia publicados na edição africana do jornal Sol de 23.9.2011)
Para os potenciais interessados aqui deixo a informação: a edição de hoje do jornal Sol, na sua versão africana, integra uma fotografia do Pedro Sá da Bandeira acompanhada de um texto meu, tudo dedicado a Shikhani.
Aproveito a ocasião para informar que o PSB tem andado ausente do ma-schamba pois está, literalmente, a tratar das suas machambas. Espero que lhe chova a contento para que possa amealhar algum pecúlio com a colheita. Que os rendimentos, verdadeiros, se substanciais ou mesmo que escassos, irão cair no regaço dos Jerónimos Martins e Sonaes, essas "grandes superfícies" tão apoiadas, legislativamente e não só, pelos "esforços desenvolvimentistas" do Portugal europeu. E o resto alimentará o Estado, que bem precisa de dinheiro para pagar as auto-estradas e similares, tão necessárias são elas para transportar ... as mercadorias para os Jerónimos Martins e Sonaes.
(Já agora, AL, onde andarão os nossos outros compadres? O MVF está em trabalho de parto, que o livro está quase no berçário. Mas dos outros nada sei, saberás tu que deles és vizinha/conterrânea?)
jpt
Na galeria Kulungwana (na estação dos CFM) uma mostra colectiva organizada por Berry Bickle serve para assinalar o fim das férias, uma mescla heterogénea que bem merece a visita: Idasse, Shikhani, Sitoe, a própria Berry Bickle, Famós, Victor Sousa, Jorge Dias, Ulisses Oviedo e Malangatana. Gostei particularmente dos "rizomas" de Jorge Dias, um inteligente regresso às suas instalações, e da surpreendente (para ele excêntrica) obra de Sitoe.
Bem estava Malangatana, ali avisando que está de viagem até à Universidade de Évora, onde receberá o doutoramento honoris causa em meados deste mês. Apadrinhado por Marcelo Rebelo de Sousa, seu conhecimento bem antigo. Aqui fica a reprodução de um quadro dessa década
["Nu com Crucifixo", 1960]
Nota: Imagem reproduzida de Okwui Enwezor (org.), The Short Century. Independence and Liberation Movements in Africa, 1945-1994 (Prestel, 2001). Se pressionada aumenta, para melhor visibilidade.
Para mim Shikhani é o maior escultor moçambicano. Ainda que não esculpa há anos. Obras de uma robustez misteriosa que nos impõem espanto. Dele procuro fugir reduzindo-as de pré-colombianas.
Na sua pintura encontra-se essa madeira, aqui disfarçada nas cores vivas com que o velho mestre risca os seus caminhos, labirintos de rotas paralelas nunca concluídos, uma angústia vejo-a eu.
Visitei-o agora, cicerone. Recebe-nos com aquele enorme sorriso de boas vindas, até desmerecidas por este amigo relapso. Está inquieto Shikhani, tanta a obra recente, acumulada sem mesmo secar. Nem nos espera, lá no aeroporto está a brotar...