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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Um dia a guerra invadiu-lhe o quimbo. Na urgência da fuga levou o que de mais precioso tinha: o gira-discos e o disco único do Sibelius, lembretes de uma vida sem guerra e miséria. Foram semanas de sobressalto e caminhada até acampar num país desconhecido. Na tenda que lhe atribuíram reunia a pequenada e, ao som roufenho do Sibelius, instruía-os nas primeiras letras e contava-lhes como era viver sem guerra e sem fome, como era viver com dignidade e com respeito. Falava-lhes da beleza e acalentava-lhes a esperança. Todos os dias se montava na partitura e voava até à Finlândia que, com o tempo, foi adquirindo a patine da perfeição. Irmão!, conte-nos como é a vida na Finlândia. E o irmão contava da abundância de comida, do tamanho da maçaroca e do sumo das mangas, das tendas que não deixavam entrar água, das mamãs e papás que não morriam, dos manos que não tinham que ir para a guerra, das escolas com carteiras e cadernos, dos hospitais com camas para os doentes e remédios para todas as doenças. Com cada nota de Sibelius ia adicionando um grau de perfeição na Finlândia dos seus sonhos: João portou-se mal?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!; entupiram-se as latrinas?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!; houve zaragata no quarteirão abaixo?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!; morreu o bebé da Zeferina?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!; vão mudar o racionamento?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!; o marido da Betina embebedou-se?, Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!. Criou assim uma vida alternativa para os meninos que o ouviam e que, por umas horas, saíam do campo aramado em que viviam e voavam até àquele seu mundo perfeito. Muitos anos depois, num próspero país ocidental, dizia-me um deles: ainda hoje se algo me corre mal na vida me lembro deste meu irmão e repito para mim Ah! Na Finlândia, isto não iria acontecer!. E eu comovida pensei que talvez o sonho e a esperança sejam os legados mais lindos que se possam deixar.
* Post dedicado ao meu amigo SJ que cresceu ao som de Sibelius na Finlândia mítica deste irmão.
AL