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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Esta semana, no próximo sábado, Stewart fará um espectáculo no Coliseu de Lisboa.
Fica aqui um aviso para os que estão (mais ou menos) perto, para que não deixem de assistir. Gosto muito de Stewart - algo que afixei há alguns anos neste texto longo: "O Clube Social do Belo Horizonte". Para quem não conhece a cena musical moçambicana ficam aqui alguns filmes de canções de Stewart. Que é agora a grande celebridade no país, o músico popular, um grande profissional num campo onde o profissionalismo é difícil e, muitas vezes, auto-torpedeado pelas idiossincrasias artísticas. E em assim sendo mantendo uma simplicidade única, uma simpatia com os admiradores, "sem coisas", sem ademanes, que o tornam ainda mais querido aos que o rodeiam, de perto ou bem de longe.
Recuperando e retrabalhando os ritmos da música urbana, "marrabentando" se quisermos um registo simples, Stewart tem outro atributo, que também vem do tal profissionalismo de atenção ao pormenor - é um excelente músico de palco. E por isso abaixo deixo gravações feitas em espectáculos, para além de alguns dos seus sucessos.
Sábado lá estarei, neste meu registo lisboeta d'agora, bilhete único. Acompanhando-me do ali. Festa, decerto.
Fotografia de Miguel Valle de Figueiredo. Stewart no Tom de Festa, 17º Festival de Músicas do Mundo, Tondela, 2009
O meu texto de hoje na coluna "Ao Balcão da Cantina", na edição do "Canal de Moçambique" O Clube Social do Belo Horizonte *
Há dias decorreu em Maputo a conferência internacional “Os intelectuais africanos face aos desafios do século XXI”, organizada pelo Centro de Estudos Africanos da UEM. Entre as comunicações refiro aqui uma, que muito me estimulou, a do meu colega antropólogo Arnaldo Bimbe, quadro superior do Ministério da Cultura. Na sua vigorosa intervenção, Bimbe abordou os esforços do Estado no combate à contrafacção de produtos culturais, em especial os audiovisuais, isso que nos habituámos a chamar “pirataria”. Aquela que nos persegue na rua, oferecendo a preço barato os produtos finos, da música internacional aos filmes de Hollywood e Bollywood.
Três são as dimensões intentadas por essa intervenção estatal: a protecção da propriedade intelectual, a de músicos, autores e de cineastas; a protecção dos trabalhadores dessas indústrias, em particular das nacionais; e a da produção dos valores sociais, a adesão à legitimidade das práticas económicas, e mais junto das jovens gerações, grande público destes produtos.
Esta última questão parece-me de difícil confronto. Pois será difícil, ainda que não impossível, convidar o cidadão comum a abdicar do acesso a bens de consumo apetecíveis (e fortemente identitários) a preços agradáveis, apenas em nome de uma postura ética, de cidadania responsável e solidária. Terá a grandeza da causa perdida, e por isso a ela adiro. Mas consciente desse “estado de alma” …
Pois como pedir ao simpático e interessado cidadão que se desfaça dos sempre parcos meticais, em nome de uma moral económica que ele não vê por esse mundo fora? Estamos, neste caso, diante de um contexto típico da expansão global da “informalização” da economia, que tantos insistem em confundir com “criminalização”. É um exemplo, a estudar, da desregulação pós-estatal. Para mais, tudo isso, toda essa desvinculação com uma ética económica legalista, se sublinha nesta área. Pois os consumidores são bombardeado diariamente com um mundo (meio mitológico) de fausto e beleza, onde habitam essas figuras do espectáculo, residentes, apreensíveis, apalpáveis, nos produtos que se ambicionam levar para casa. Certo é que esse mundo construído pela comunicação social não reflecte o mundo artístico real, mas cria uma imagem de tal forma distante que afasta a consciência da necessidade de respeitar os direitos da propriedade. Dessa gente que parece (que parece, sublinho) viver em tais nuvens douradas.
É um cenário bem difícil para apelar a uma conduta “livre de pirataria”. Não chega para desistir, mas é algo paradoxal o pedido de rectidão que se faz ao amante da Celine Dion, à fan deste Sean Paul que agora nos visitou, aos frenéticos do porno, ao entusiasta do Denzel, ao assinante do “The Rock” ou, ao é mais o meu caso, ao falsamente distraído espectador da Jennifer Lopez (que belo nariz …) ou, ainda mais, da Angela Basset (diria mesmo mais, que belo nariz …).
Restam-nos dois pontos: a protecção aos trabalhadores da indústria fílmica e da musical. Aos operários, e serviços envolventes, que produzem e distribuem os filmes e discos legais. Como recordou Bimbe, das dez empresas moçambicanas que há alguns anos se dedicavam a esta actividade resta hoje apenas uma. E isso tão doloroso é. Pois, como diz o ditado, quando dois elefantes lutam quem sofre é o capim. Agora este desempregado ou obrigado à reconversão, quase sempre em condições mais adversas. Ou, pelo menos, mais informais, com menores remunerações, direitos laborais e segurança.
Neste campo de revitalização económica será necessário olhar para fora. Para as formas como as indústrias musical e fílmica, verdadeiras minas que eram, sofreram o embate da revolução tecnológica nas últimas décadas. E como tiveram artes (e manhas) de se reanimarem como filões. Não foi a “pirataria” que abalou o cinema, mas sim o “vídeo”. Que alterou os modos de consumo. E isso foi apenas o princípio, bem mais complexas são hoje as formas de interacção do cinema com as formas de consumo público ou doméstico, informatizado ou televisivo.
A minha atenção centra-se na música moçambicana. Pois o (pequeno) mundo do cinema nacional terá particularidades algo diferentes, creio que os seus maiores problemas radicam no financiamento e nas condições de produção. Certo, também na distribuição dos seus produtos. Mas a indústria fílmica é bem diferente, mais “pesada”, e urge possibilitá-la.
A indústria musical sofreu alterações radicais. Mas não será a “pirataria” discográfica o grande obstáculo aos artistas. Pois a a capacidade de gravação e armazenamento por parte de qualquer ouvinte, melómano ou não, é incomensurável. As aparelhagens (também elas em contrafacção, diga-se) são baratas, acessíveis, e tudo sugam, tudo guardam. O que me surpreende é que ainda hajam discos piratas … e clientes para tal.
O problema fundamental será outro, o achatamento do mercado musical, o privilegiar da fast-food rítmica “globalizada”. Assim, quanto aos músicos moçambicanos, e tantos em condições profissionais e biográficas tão difíceis, o importante é divulgá-los, devolver-lhes as condições de aparecimento. Assim este contexto actual, de extraordinária facilidade da reprodução musical, pode ser mais do que uma agressão aos músicos moçambicanos. Pode-se tornar um cenário de alargamento das suas condições de trabalho, e do seu reconhecimento.
Pois na actualidade é possível, e tão mais barato do que foi anes, fazer o levantamento e identificação dos músicos e das músicas, a gravação (musical e audiovisual), o registo dos ritmos, das canções. Bem como dos instrumentos utilizados, dos seus artesãos quando é o caso do recurso a instrumentos ditos “tradicionais”, e nisso salvaguardar e potenciar esse manancial de sabedoria. Nisso a gravação e fixação dos arquivos vivos da música popular, urbana, periurbana, rural. E das interacções entre estes contextos. A recolha das histórias de vida, dos músicos, dos grupos, das associações. Uma fervilhante biblioteca viva, uma sonora sala de espectáculos, uma enorme galeria de imagens. Tudo está aí. Para captar, reviver, “empoderar” através destas magníficas tecnologias de hoje.
No fundo, muito daquilo que há décadas, em tão mais difíceis condições sociais e, fundamentalmente, tecnológicas o ARPAC intentou, e tanto realizou.
Resumo: a parafernália actual, a maquinaria de gravação áudio, fotográfica, visual e escrita, é relativamente barata e extremamente acessível. Muito mais do que isso, as condições de disseminação, de divulgação deste património, vivo, rico, activo, são baratas, acessíveis, fáceis. A “net”, como dizem os utentes. Os sítios (“sites”) a construir, as meras redes sociais, o fluxo “youtube”. Nesse sentido, e isto é o fundamental, qualquer agente, activista ou associação, empresário cultural, ou mesmo as próprias instituições estatais, podem usar todas estas condições para divulgar o trabalho dos músicos, a sua espantosa diversidade.
Nisso salvaguardando o património musical existente. Também impedindo o seu aplainar, pisar, pelos ritmos lisos que vão sendo importados e pomposamente tornados “cultura moçambicana”. Mas, muito mais do que isso, fazendo regressar aos palcos músicos, ritmos e melodias. Do que se trata é de um “Plug-in”. Dar poder aos músicos, power, energia.
Lembro o livro de Amâncio Miguel, o “Marrabentar: dar voz às vozes” (Marimbique, 2005), a recolha de dezenas de histórias de vida e/ou biografias dos cantores. Mas mais ainda, tudo isto me faz lembrar um homem como Stewart Sukuma, músico tão interessado nas articulações musicais, na reutilização actual dos ritmos, melodias e artistas seus mais-velhos. E um grande profissional, e com grande unanimidade por este aqui dos amantes da música. Seria ele, com toda a certeza, a grande bandeira para conduriz este “Clube Social do Belo Horizonte”!
*(espero que) óbvia alusão ao “Buena Vista Social Club”, o trabalho musical com velhos músicos cubanos induzido e produzido por Ry Cooder, e o filme realizado por Wim Wenders [sítio oficial aqui]