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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
(Imagem encontrada aqui)
Leio a nota que sua filha colocou ontem no seu tão cuidado blog Ofício Diário, anunciando-nos, aos fiéis leitores, a morte de Torquato da Luz. Sabia-lhe o nome, o papel na imprensa portuguesa, em particular em tempos épicos da instauração da democracia. Mas foi nesse "Ofício Diário" que o conheci, acompanhando-o ali, onde durante anos, desde 2004, de um modo paciente, apaixonado e tão sóbrio, partilhou a sua poesia.
Sou um mau leitor de poesia, impaciente, quantas vezes buscando-lhe o rumo e mesmo desenlaces que ela não quer ter. Ou que eu não consigo descortinar. E nisso lembro agora que, há um mês, ao chegar ao "Sem drama", último poema que ali deixou, me senti retratado naquele, nada acusatório mas tão descansadamente irónico, transpirando a bonomia do homem vivido e sábio, "Poucas pessoas gostam de poesia, / embora a maioria, / como é sabido, diga que sim. / (...) / Vicejando em qualquer lado, / há quem a ponha na lapela / para o encontro aprazado. / Outros mostam-na à janela / no lugar do cortinado. / Mas, sem que nisso haja drama, / raros são decerto aqueles / que a fazem dormir com eles / noite após noite na cama". Pensei até enviar-lhe nota dessa minha sensação de retratado, "sem drama" claro. Falhei nisso, perdendo-me em demoras.
Com gentileza, que me foi até surpreendente, e que inicialmente atribuí à solidariedade no seio desta confraria bloguística, foi-me enviando os livros que ia publicando. Agradeci-lhos, com sinceridade, mas nunca me atrevi a perguntar-lhe da razão de ofertar este leitor sempre silencioso. Fiquei-me com a ideia, fico-me com ela, pois me é agradável, que fosse forma dele remeter o seu trabalho para este Maputo, o ex-Lourenço Marques, onde um dia, longínquo das quatro décadas já decorridas desde 1971-2, entrou com os seus poemas nessa espantosa, até lendária, aventura do "Caliban", revista como-se-fundacional capitaneada por António Quadros (então J.P. Grabato Dias) e Rui Knopfli. Sendo assim meio de refutar, pelo menos em parte, aquilo do "Tudo o que outrora soube e já esqueci: / os nomes, coisas, datas e lugares. / (...) / Tudo o que tive e nunca mais terei." (em "Tudo"), neste caso um seu lugar de ombrear poético.
Assim sendo, deixando-me crer nesta versão, nesta sua morte regresso ao Torquato da Luz de "Caliban", neste meu volume que um dia, abençoado seja, José Soares Martins e Nelson Saúte, abençoados sejam, decidiram reeditar e reavivar. A um Torquato da Luz invejável, capaz de deixar isto (será que o viveu?, e se sim ainda mais invejável ..., invejo-o eu, sempre estancado diante da aflição):
Apenas aflição
Apenas aflição e nada mais.
Um arrepio correndo o corpo todo.
Estar aflito é um modo
de estar com os demais.
Aflito. Como se um rio
de súbito saído do seu leito
afogasse o navio
do corpo a que estou sujeito.
Não temas. É aflito que escrevo.
Aflito realizo
ser de tudo o que vejo o dono e o servo.
Tudo o mais que preciso
é saber que me devo
um permanente aviso.
(Caliban, nº 3-4)
Adenda: também coloquei este postal no Delito de Opinião. Lá, nos comentários, Ana Vidal deixou um poema auto-retrato de Torquato da Luz. Mais do que se justifica trazê-lo para aqui:
O QUE DER E VIER
Tributário apenas da verdade,
avesso a peias e grilhetas,
feito da massa dos poetas
e dos que amam a liberdade,
sensível à dor própria e à dor alheia,
lutando até ao fim por uma ideia
de peito aberto e sem ter medo
de nada nem de ninguém,
capaz de guardar segredo
mas de o revelar também,
eis como sempre hei-de ser
para o que der e vier.
Torquato da Luz publica no Ofício Diário. Há pouco editou este seu novo livro "Espelho Íntimo" (edição de O cão que lê), que agora me chega às mãos. Uma poesia que diz o caminho, necessário, contínuo. Insano?
Pescaria
Pescador de águas límpidas, lancei
a minha rede e esperei.
Mas o peixe fugiu, foi mais sagaz
do que algum dia imaginei.
Agora só me resta ser capaz
de começar de novo a pescaria,
até um dia.
jpt
Torquato da Luz, veterano confrade bloguístico que habita o Ofício Diário, vai publicar mais um livro de poesia, intitulado "Espelho Íntimo". A apresentação pública será na longínqua Lisboa, no próximo 26 de Maio. Os meus desejos que o leiam.
jpt[Torquato da Luz, Por Amor e Outros Poemas, Papiro Editora, 2008]
Alcanço agora este livro de Torquato da Luz, confrade bloguista. Como ilustração do ar ali vivido deixo este poema ...
Cais
A sós, no cais, olhando o barco que partia,
não era de ti que me despedia,
mas de mim, que nessa hora
sem acenos me fui embora.
Descobridor de mares que nem sequer sabia
que nome tinham, se era noite ou dia,
por longo tempo naveguei
até que, por fim, voltei.
Mas do cais da largada não restava já
lembrança alguma e muito menos há
muralha onde acostar.
E, sendo tudo em volta mar e mar,
não me resta senão continuar.