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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Um breve livro em registo memorialista, desprovido de quaisquer pretensões literárias mas de interesse sociológico: "Inquérito em Moçambique" (Lisboa, Editorial Minerva, 2002) de Vanessa Guerreiro (pseudónimo de Gertrudes Mendonça). A autora, técnica de saúde, narra as peripécias em torno da realização de um inquérito sobre a saúde materno-infantil nas províncias de Cabo Delgado, Inhambane e Niassa, decorrido nos anos da penúria e da guerra civil, tudo indica que na década de oitenta.
Neste episódio pode-se entender (e até intuir) o percurso da autora no processo nacional. Lusodescendente - o pai, arquitecto responsável pela edificação do edifício da então Câmara Municipal de Quelimane, é emotivamente evocado (p. 27) - V. Guerreiro insere-se no aparelho de Estado moçambicano e é enquanto seu quadro que adquire a sua formação profissional. Nisso não será exactamente uma figura típica, tanto pelas suas aparentes origens sociológicas como pela sua idade (é já avó) na época que narra.
Três são as dimensões mais interessantes que o livro desvenda. Em primeiro lugar a que respeita ao peso das delimitações socioculturais nos processos de interacção pessoal. Com efeito à excepção de uma autoridade de Inhambane, surgida em socorro da equipa dados os episódios da guerra, as personagens significantes individualizadas são estrangeiras - a amiga cooperante italiana, o colega cooperante sueco, o pensador cooperante africano (maliano?) evocado e, até, o intrusivo e arrogante investigador americano - este um caso muito típico aqui, seja o indivíduo em causa seja a reacção da autora: "Estes estrangeiros, que vêm para aqui colher material exótico para as suas teses e ainda por cima prejudicam o trabalho dos nacionais" (38). Ligando este feixe de relações individuais significantes às queixas face ao funcionamento do funcionalismo existente pode-se intuir a solidão profissional (e social?) da memorialista, algo associável à exaustão que vai indiciando (a pobreza dos netos, os preconceitos sofridos internamente e seus efeitos em termos profissionais e pessoais, a refutação da pertinência dos cooperantes estrangeiros, a descrença radical nos modelos assistencialistas de desenvolvimento).
A segunda dimensão é a do desalento, da des-ilusão ideológica e moral. O livro abre com a denúncia da corrupção (a individualização dos interesses, seria melhor chamar-lhe assim) desde os alvores do período nacional (p. 8), com a denúncia da ausência de uma ética do trabalho (pp. 28, 68) e, inclusivamente, com a recusa da ideologia de então, essa do moldar de um "homem novo" (típico dos regimes de extracção socialista): "para se ser honesto não é preciso estudar, não achas?" (p. 8), epítome de uma absolutização da moral. Enfim, esta é uma crónica do desencanto, de uma adesão moral (não é explícito se também ideológica) desfeita pelo real. Um desencanto moralista subjugando o apreço telúrico que se assume sempre como marca e vínculo identitário: "Quem me dera ser poeta, para passar toda esta cena para um poema" (p. 43), diz diante da natureza que pode fruir, e também diante do "verdadeiro povo moçambicano" (p. 69), assim como se que inconscientemente naturalizado. No fundo, a estética lírica como vinculativa.
Finalmente o para mim mais interessante pois mais original. A forma como a técnica de saúde procura, face ao real e agora sim tentando libertar-se dos seus preconceitos morais, entender as dimensões positivas (ou pelo menos como se abre à possibilidade da sua existência) dos regimes polígamos no domínio da saúde infantil (e maternal), a forma como deixa a hipótese das vantagens da poliginia nas dimensões dos direitos das mulheres e da saúde de mulheres e crianças. Uma reflexão prévia à dominação extrema da ideologia do género, aqui sim sob o primado do real, deixando ainda interrogá-lo.
É elucidativa esta aparente contradição de olhares - tão recorrente, diga-se. Como os pressupostos, até preconceitos, se afirmam e reafirmam no discurso sobre o político global quando assente numa ideologia moralista. E como eles, pelo menos entre aqueles que mais atentos olham, acabam por ser questionados face ao que acontece na área profissional, na realidade real conhecida.