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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Sobre Venâncio Mbande aqui no ma-schamba.
[Este é o texto de hoje no Canal de Moçambique]
Mês de Natal, também festa de família num país tão multi-religioso. Festa nas cidades, pelo menos para os que não adversos ao “universo cristão”, que Natal no campo é bem outra coisa. Festa para cristãos, por crença e hábito ancestral, e de outras confissões, por salutar convívio com usos que lhes foram alheios. De consumo excessivo, coisa de ritual. Pois momento de sacrifício, de oferendas, de dissipar para vir a (re)colher num futuro que venha.
Durante o mês vamos partilhando as “Boas Festas” com conhecidos ou desconhecidos, assim querendo-as para todos. No dia juntam-se as famílias, às vezes até nelas acolhendo amigos, esses assim anunciados como parentes, espirituais. Come-se e bebe-se em demasia, e nisso em cada casa conforme o que se pode. Para isso preparam-se as coisas do costume, que se a mesa deve ser farta o possível este não é momento de inovações. Pois em cada sítio comer-se-á diferente mas todos têm “aquilo que deve ser” o dia.
Trocam-se dádivas, as prendas, no dizer e confirmar que “somos família, somos dos nossos” e nisso até se estendem, a esses amigos então ali e mesmo a outros, visitados para a ocasião, num afinal “és como família”. Trocam-se prendas e sentimentos, sem sentimentalismo. É altura em que mesmo os mais empedernidos gostam de ser ofertados, de serem assim lembrados. Convocados.
Alguns ofertam os mais pobres, forma de dizer que todos são parentes ou que o deveriam ser nesta humanidade. Talvez por isso tão acertados vão aqueles que dizem que o Natal deveria ser todos os dias. Os religiosos vão à missa. E nisso falam com os antepassados, é dia de (também) os evocar. E, até, de os invocar.
Assim comungamos, “estamos juntos”. Tréguas nas zangas, intervalo no individualismo, hesitações no puro egoísmo. Para continuarmos a ser. E na esperança que por todo este excesso, de coisas e sentimentos partilhados, venhamos a ter e a ser mais. Até este ateu, que escreve, sente assim os dias. Mesmo que depois siga, sei-o bem, na sua concha. Imóvel.
Nesta altura, imigrante longe da família, festas assim dolorosamente amputadas, partilho a minha imaginada cesta de Natal, aquelas oferendas que escolheria, tivesse eu o dinheiro e a gente para ofertar. Alguns lerão e resmungarão que o povo não tem dinheiro para isto, que agrido a pobreza alheia. Outros dirão que faço publicidade, deverei estar a ser pago. Sejam, sff, natalícios, suspendam a má-vontade. Partilho gostos, apenas. Então é assim a minha imaginada cesta de Natal, 10 prendas:
Um livro, “Sangue Negro” de Noémia de Sousa, reeditado este ano pela Marimbique. E alguém poderá ler, alto, algo como se canção de Natal: “Dia a dia / o pulso à roda de tudo / se aperta mais e mais … /Dia a dia, grades e grades se forjam / tapando o sol de toda a gente. / Dia a dia / do fundo da noite em que nos estorcemos / mais e mais se sente / a certeza radiosa de uma esperança …”.
Um saco de castanha de caju. A castanha é a minha paixão. Compro-a (sacos de 180 meticais) nas vendedoras do mercado do peixe, e nunca me arrependi.
O single “Caranguejo”, de Stewart Sukuma. Porque alegra. E porque o cantor nos vem dando entretenimento denso, juntando a tradição urbana com a moderna qualidade de produção, sem facilitismo. Se há indústria musical aqui é Stewart.
Um frasco de mel, por exemplo daquele de Boane, que ainda não é uma compota química.
Uma aguardente Aloe, produzida no Mossuril. Que tal um intervalo no culto dos “rótulos vermelhos” ou “negros”? Esta destilação da aloe vera, célebre planta dita miraculosa merece atenção. Não curará os excessos alcoólicos mas animará o convívio.
Olhando o que vem do Mossuril junto o licor de jambalao (Jamba Brandy), para beber fresco e partilhar com as senhoras. E esqueça-se a Amarula, esse leite condensado bem publicitado, sff.
Uma fotografia de Ricardo Rangel. No ciclo de actividades que o homenageia já houve a exposição “Rangel e as crianças”, na galeria Kulungwana (estação dos CFM). Por 3000 meticais (imenso para a maioria, mas acessível à burguesia natalícia) pode-se ter uma das fotos com que Rangel retratou e imaginou Moçambique. A dar a alguém a quem se quer dizer algo especial.
Um conjunto de seis frascos de condimentos (300 meticais). Eu compro os do restaurante Petisco (no Hoyo-Hoyo), excelente fabrico caseiro, e proponho uma mescla de achar de limão, chutney de limão e tâmara, chutney de manga, miscut de tendlim, miscut de manga e kassaundi de manga.
Um queijo de Chimoio, até amanteigável, ou até mesmo do apicantado. Bem mais saboroso do que os sintéticos que chegam da vizinhança ou dos básicos e caríssimos portugueses que aportam a Maputo.
Outro disco, o “Timbila Ta Venâncio – Ao vivo no Teatro África”, o apenas segundo disco do enorme Venâncio Mbande, gravado este ano. Bom som, boa produção, uma selecção de 11 significativas músicas. Se tantas loas tem a música de timbila então é obrigatório levar o disco para casa dos parentes. Sem discursos, só para gozar a vivacidade e a riqueza, feitas alegria.
Desejo a todos um Natal “saborosamente moçambicano”.
jpt
(fotografia emprestada pelo Toix)
1. Quinta-feira passada houve sessão no Instituto Camões, homenagem a Venâncio Mbande, nome enorme da música moçambicana, maestro timbileiro, homem já alvo de um filme: Keep the Timbila Playng, de Frank Diamand.
Casa cheia, que tinha havido mobilização via SMS. Cheia com o meio das artes e ainda mais de muitos expatriados, gente nova (estou a envelhecer, constato quotidianamente ...), sem dúvida que mais ou menos recentes cá, com aquela curiosidade característica de quem chega e quer conhecer- dia bom para eles, a poderem ver e ouvir uma lenda.
Dia estranho para mim. Certo, a homenagem em vida é bonita. Mas o teor da homenagem talvez nem tanto. Mbande está doente (não terminal, atenção), envelhece (talvez 66 anos), está sem dinheiro para a subsistência, para os medicamentos - é diabético. Os amigos, neste caso os discípulos Timbila Muzimba e mais alguns, organizaram a sua vinda de Zavala, onde o grande maestro timbileiro reside. E fez-se a sessão de homenagem, antecâmara de uma que acontecerá dentro de dois meses, a ocorrer no Centro Cultural Franco-Moçambicano. E foi o perfil desta agora acontecida que me arrepiou - até porque dela se podem retirar ensinamentos para daqui a dois meses. E para um futuro mais estrutural ....
Discursos de homenagem, discurso do próprio, 3 músicas (10 minutos?). E peditório - "quem pode dar dinheiro entregue ali na mesa". Um generalizado mal-estar. Algumas considerações sobre isto:
a. Solicitar ajuda aos amigos e aos admiradores não é errado. Dá-la também não o é. Ambas atitudes só enobrecem.
b. O Instituto Camões, representado pelo bibliotecário, saudou o homenageado e entregou-lhe um "diploma de mérito", entre merecidos aplausos. Confesso, coisas de antropólogo a olhar o simbólico: haverá algo a dizer do downgrading protocolar, ou terá sido mero constrangimento do quotidiano? Mas o que é um "diploma de mérito" do Instituto Camões? É da sede, um grau oficial que o ICA tem? Se é disso que se trata é ao bibliotecário, ainda que indivíduo e posição mui dignos, que compete a entrega? O que significa isso? E se o é, outorga-se um diploma deste relevo e arruma-se a questão, ainda para mais numa situação humana destas?
Se não é desse grau que se trata, tal como a dimensão protocolar e o anúncio público me parecem configurar, qual a figura desta homenagem - é um "diploma" ad hoc atribuído pelas sucursais do Instituto Camões? Se sim quais são os critérios de escolha, de proposta, de candidatura, de entrega? Venâncio Mbande merece um diploma de mérito da instituição de representação cultural externa de Portugal? - em meu entender merece (e do oficial, se se confirmar a minha opinião de que não foi desse que aqui se tratou) pois a expressão legitimadora que o subjaz "...em reconhecimento da sua relevante acção em prol da defesa e da promoção da língua e da cultura portuguesas no mundo" deverá ser entendida apenas como sobrevivência de uma concepção reduzida da acção cultural externa, fruto de uma noção presumivelmente já ultrapassada (a legislação que instaura a outorga é do consulado guterrista). Mas ainda assim, repito, quais são os critérios de atribuição (necessarimente públicos e publicitados) destes diplomas, mesmo que meramente oficiosos, localmente consignados?
Ou seja, honestamente, o desenho pareceu-me excessivamente atabalhoado, desmerecendo a homenagem, desmerecendo o homenageado. Grave? Sim. Mbande estava ali também como símbolo. É símbolo, assim considerado. O estrangeiro em casa alheia respeita o símbolo. Ou, pelo menos, exime-se ao ritual que o vivencia.
Dramático? Não! Não faltarão momentos mais ou menos próximos de índole protocolar para emendar o passo (ou, caso eu esteja enganado, para o completar). Um apoio da "cooperação" portuguesa (em sentido lato) à questão da saúde do enorme artista (para os portugueses que lerem isto lembrem-se da figura de Carlos Paredes - ainda que este ao menos fosse arquivista de um hospital, se bem me lembro, o que lhe daria para pagar as sopas e a renda) caberia perfeitamente nos protocolos bilaterais existentes no domínio da saúde. Um projecto de musicologia poderá ser desenvolvido, com gravação extensa da arte e remuneração suficiente - a preços acessíveis, dada a facilidade de gravação actual. Basta vontade. E reconhecimento do "mérito cultural"...
2. Na cerimónia o vice-ministro da Educação e Cultura saudou o grande músico e a iniciativa. E disse algo que soou pouco simpático mas que é verdade - o Estado não pode apoiar tudo, "temos" que nos organizar nestas iniciativas solidárias. Eu não o ouvi, estava à porta dada a aglomeração de pessoas à minha frente. Mas ouvi os comentários - caíram mal as palavras de Luís Covane. É o problema dos políticos, quando não são demagogos as pessoas não gostam. Covane falou bem, é a minha opinião. Ainda que neste caso eu ache que o Estado tem possibilidades (e responsabilidades) para intervir.
Entenda-se: as timbilas de Zavala (núcleo territorial onde a prática é original, ainda que esteja algo disseminada até Zambeze acima e se tenha maputizado) são um dos itens que têm sido escolhidos pelo Estado e pela intelectualidade moçambicana como denotativos da identidade nacional. A sua excentricidade na África Oriental - porventura demonstrando a sua longínqua origem exógena, o que é interessante face à complexidade do argumento "autenticidade" no mecanismo identitário moçambicano actual - a isso ajuda. Por isso mesmo o Estado se empenhou na campanha para a eleição do ritmo musical chope timbila como património imaterial da humanidade - à imagem do que fez com as danças nyau. Deste modo não me parece muito curial que o mesmo Estado não tenha capacidade para intervir num momento de dificuldades do grande músico identitário. Não tem recursos próprios? Acredito - mas com toda a certeza poderá fazer apelo às grandes empresas moçambicanas, públicas, privadas ou participadas, e com alguma imaginação encontrar formas de apoiar dignamente o músico, até baseando-se na muito em voga ideia da responsabilidade social empresarial. O tal projecto de gravação, uma escola financiada, uma pensão condigna, etc. - há múltiplas formas de abordar o assunto, sem que isso implique obrigatoriamente um dispêndio do orçamento estatal (sobre o qual eu, cidadão estrangeiro, não tenho muito a opinar, como é óbvio).
3. Algumas empresas patrocinaram a homenagem. De uma forma tímida. Um dos amigos de Mbande disse-me que um dos habituais grandes patrocinadores das "coisas" da cultura ofertou 200 USD. Isto demonstra (mais uma vez) que no seio das grandes e médias empresas aqui operando há uma enorme ausência de sensibilidade e conhecimento cultural. Pródigas em patrocínios, tanto mecenáticos como publicitários, nelas não se descortina uma verdadeira ideia do "como fazer", do "que fazer". Mostra-se, amiude, uma verdadeira ignorância nos quadros que decidem. Gastariam menos, recolheriam mais dividendos, acima de tudo estatutários e simbólicos, para não falar de comerciais, se tivessem verdadeiros assessores para estas matérias.
200 dolares para um aflito Mbande quando abundam os 500 e 1000s para as enésimas iguais exposições de pinturas de ocres e laranjas, em troca de quadros a serem amontoados em armazéns e aí esquecidos? Quando o afro-pimba é dourado em horários nobres e prémios rotundos? Alguém está enganado nestas andanças ...
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