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A "cena" da bandeira nacional

por jpt, em 24.06.14

 

Leio que um jovem artista, Élisio Menau, fez a instalação "Portugal na Forca" (acima retratada) na qual a bandeira nacional surge “enforcada” numa estrutura de madeira. Assim procura o autor representar a situação do país. A obra foi apreendida pela polícia, sendo que Menau está a responder em tribunal acusado do crime de ultraje à bandeira nacional.

 

Fico estupefacto. É um espanto completamente alheio ao que possa pensar sobre a densidade da peça-momento. E nem vou elaborar sobre a possibilidade da autonomia transgressora das artes. Mas esta pantominice policial lembra-me um acontecimento histórico e uma realidade contemporânea.

 

Há sessenta anos, na então Lourenço Marques, o poeta Virgílio de Lemos (com o pseudónimo [ou heterónimo] Duarte Galvão) escreveu 

 

 

(...) Ah! Tantos desconhecidos mortos
os que nasceram mais tarde
não hão-de-gritar humilhados
bayete-bayete-bayete
à kapulana vermelha e verde
se substituírem no tempo
kapulanas de várias cores. (...)

 

Foi a tribunal, acusado de desrespeito à bandeira. O advogado convenceu o juiz - um convencimento que imagino sociologicamente contextualizável na pequena sociedade colonial de então - da dimensão metafórica de chamar capulana à bandeira pátria. E, dessa vez, Virgílio de Lemos foi inocentado. É óbvio que a "situação" de então, o salazarismo extremado em contexto colonial, era diversa da de hoje. Mas exactamente por isso mais óbvio é que o afã de preservação da "sacralidade" da bandeira tem que ser mais matizado.

 

Depois há a actual relação com a bandeira nacional. Desde o populismo scolarista de há uma década que a bandeira passou a ser afixada pelos populares em todo o lado: janelas e águas-furtadas, antenas de carro, montras de lojas, bancas das praças, autocarros, táxis, etc, uma apropriação transversal do símbolo, objectivamente desregulamentadora do seu uso e dessacralizadora. Ao visitar Portugal meses após os grandes eventos nacionais (entenda-se, nesta era histórica são os jogos da selecção de futebol) viam-se (e talvez se vejam ainda) as esfarripadas e imundas bandeiras abandonadas por todo o lado. A simbólica bandeira passada, literalmente, a trapo velho e esquecido. Sem que haja qualquer intervenção estatal/policial para obstar a esse óbvio desmerecimento.

 

Até a vestido desceu, exactamente como na linha poética de Virgílio de Lemos: lembro o meu espanto horrorizado quando vi a mulher do então presidente da república Jorge Sampaio (então convicta que desempenhava aquilo algo a que a ignorância lusa chama de "primeira-dama") se apresentou num jogo de futebol do campeonato europeu de 2004 com um vestido que mimetizava a bandeira. E com toda a certeza escoltada pela polícia - que então nem a deteve nem a acusou de desrespeito à pátria.

 

Mais ainda sobre as particularidades da relação policial com a bandeira. Passeio-me por Portugal e vou vendo bandeiras estrangeiras. Ainda há meses jantei num restaurante italiano (assim para o "chic") ali às Janelas Verdes. Uma casa térrea, no centro histórico de Lisboa. Tem um mastro onde está hasteada (e até durante a noite ...) a bandeira italiana, em cúmulo de arrogância. E não há um polícia que vá lá arriar aquilo, como é óbvio que urge fazer. E multar a casa, já agora.

 

Mas vão chatear o puto candidato a artista, este Menau. Ainda, evidentemente, imberbe nas coisas da metáforas e metonímias, em mero bodyboard da onda gira do hoje. Mas antes assim que estes trôpegos e imbecis nacionaleiros.

publicado às 01:56

[Virgílio de Lemos, A Invenção das Ilhas, Escola Portuguesa de Moçambique]

 

Uma antologia de Virgílio de Lemos (nascido no Ibo em 1929), há longas décadas vivendo em França, organizada e posfaciada pelo António Cabrita (ficha mais extensa aqui). Vou andando, de heterónimo em ortónimo, curiosidade também pelo mapeamento cultural de um já antigo Moçambique que aqui se encontra, um caminho reforçado por ter conhecido o poeta nos anos 1990s, em Lisboa e depois aqui, quando veio lançar dois livros em Abril de 1999, que mostrei aqui.

 

Mas de repente tudo isso se suspende, desvanece, e volto bem atrás. Nisto, na memória do Nuno. Longínqua, quase trinta anos passaram desde que partiu.


7. Fotografia

 

Para o Nuno T. de Lemos


O pescador era seu filho. Belo.

Sua imagem autêntica, de torso nu.

Cena de um filme?

A mãe sorria:

na praia, o linguajar das redes.

Peixes na agonia.


(Sesimbra, 1983)


jpt

publicado às 00:51

VirgilioLemos invençaco

 

Comemorações (já!) do 10º aniversário da Escola Portuguesa de Moçambique. Feliz iniciativa, a de publicar este "A Invenção das Ilhas", uma antologia de Virgílio de Lemos, organizada por António Cabrita, e que contém ainda uma longa entrevista ao poeta, realizada em 1999 por Carmen Lucia Tindó Secco, para ser integrada na publicação da obra por ela organizada "Eroticus Moçambicanus" (editada por Nova Fronteira). A obra contém ainda, em regime de posfácio, um colóquio do organizador consigo mesmo, "A Buganvília Que Ri. Sobre a Poesia e Outros Suspensórios ou Breve Telegrama para o Virgílio de Lemos, Poeta da Luz e do Tricórnio". O volume contém vários dos seus heterónimos, Bruno dos Reis, Duarte Galvão, Lee Li-Yang, Virgílio de Lemos, cruzando a produção destes autores desde o início de 1950s até à presente década.

 

Avisam-me de planos para a publicação da sua obra completa, na Imprensa Nacional-Casa da Moeda. E ainda a iniciativa da tradução para português de (parte da?) sua obra em francês. Um conjunto de iniciativas que trarão Virgílio de Lemos para o convívio de poetas moçambicanos, uma presença hoje quase invisível como afirma Cabrita. Coisa talvez do seu percurso biográfico, há longas décadas vivendo em França e com muito raras visitas a Moçambique. E também ao relativo esquecimento, apesar do reconhecimento que alguns, como Eduardo Lourenço e Patraquim lhe votam.

 

Fica, não como exemplo, mas como nota de quem então partiu para não voltar, este poema de 1963, da autoria de Duarte Galvão:

 

Beijo-te Inteira África


Meus lábios procuram-te avidamente

e no delírio do meu amor por ti

beijo-te inteira África

e sou cruel terno verdadeiro


Nos troncos esguios de altos eucaliptos

shindjingritanas e soas

fazem ninhos e amor

sem a consciência das coisasmetafísicas.

Nós escutamos ritmos de jazz puro

de John Lewis

ou com volúpia dançamos

novos ritmos de marrabenta.

Mas não estamos anestesiados

pela música e pelo amor.

Meus lábios procuram-te loucamente

e no êxtase de minha derradeira entrega

beijo-te inteira África

e parto angustiado.

publicado às 06:17

(Virgílio de Lemos, Ilha de Moçambique. A Língua é o Exílio do que Sonhas, Maputo, Associação Moçambicana de Língua Portuguesa, 1999)


 

A Ilha e e o Segredo


Visão

colada à bruma

no infinito ponho

do rosto do eterno

a transparência


Persa negro e branco

cabaias e cofiós

de seda e linho,

em pontilhado, aurora

minha utopia que sangra.

Nos mármores róseos

da fortalezatua consciência, livre

recria o nada.


(1952)


m’siros na menstruação

dos ventos

no desafiar das pedras

e corais,

nos desventrados barcos

és nova equação

índica, swahili,das bocas de fome

e afiados punhais

de prata.



Virgilio de Lemos, poeta francês de origem portuguesa, nascido em Moçambique. Aqui 50 anos de poesia colectados; uma constante erotização da Ilha. Mas também...


C'est bien Zanzibar et Ibo

que je chante à Londres,

Vienne que je vis à Paris,

Marrakech à Lisbonne

quand je me trouve ailleurs.

Ailleurs se trouve ici. 

 

(Virgilio de Lemos, Objet à Trouver. Paris, Editions de la Difference, 1988, p. 46)

publicado às 08:25

A minha rua

por jpt, em 08.01.04

A minha rua até hoje. Narrada há cinquenta anos


o desmaiado sol
deixa que renasça
o fim da tarde
buganvilias reluzem nas
profecias e mitos
sol
de ausencias
submarinas estrelas
de violencias e desejo

as silhuetas de barcos
desenham tragicas
viagens,
dragoes e anjos
a cores percorrem
o poente,
retratos antigos
renascem
vozes e poeiras
lanhos
no viço da raiva.

Da morte, a visao
Se veste de vida
Confundem-se de vida,
Confudem-se mares
E ilhas, amor e
Odio

O fogo
Sobre as ondas
Resiste
O saber da lingua
Invade
O corpo inteiro
Cerro os olhos,
Mordo os labios
E o mar estremece.


(V. Lemos, Negra Azul, Maputo, Instituto Camões - Centro Cultural Português,1998)

publicado às 15:20


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