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Fado vadio

por jpt, em 30.01.11

Entre-outros e num breve café no campus conhecemos um simpático colega vindo do tão-norte. Logo o convidamos a conhecer as nossas instalações e até, com prazer, o nosso gabinete. Porque este também exíguo cedo-lhe minha cadeira e mesa, enquanto todos nos juntamos ali, como se à volta do fogo. Ele fala. Topológico, como o meio de onde vem. Desatento - do com quem convive e, por isso mesmo e acima de tudo, de todo o mundo que o rodeia. Tiques do irmão grande, esquerdista superficial ("o radicalismo pequeno-burguês de fachada ...", como dizia, acertadamente, o pesadelo - ainda que a fachada de hoje seja menos proletária), com que as universidades os moldam. E é nisso, nessa eulogia colectiva constante, e por isso abrasiva, que no caminho das palavras, sem que haja motivo-motivo, o vejo a atacar Nabokov e Borges, resmungando-lhes as posições políticas. Não se está a lembrar de nenhum compagnon de route (e, recém-chegado a um país que já foi comunista e maoísta, até lhe podia cair o raciocínio para esse apressado). Pois a questão nunca é com esses ... Repito, acabei de conhecer o simpático colega, e  está, a meu convite, sentado na minha cadeira, na minha mesa de trabalho.

 

Não, não é um lisboeta bloquista, cheio de si próprio e dos seus amigos trendy. Mas ao ouvi-lo sorrio, de súbito em pleno Janeiro Verão sinto-me longe, lá no Bairro Alto, como se em pleno lisboeta fado vadio. Em casa?Mas depois ... não. Que aquela não é a minha casa. Mental. Pois alienada ...

 

 

 

Quando eu costumava dizer que o comunismo, a longo prazo, era uma coisa grandiosa e necessária; que a jovem e nova Rússia estava a produzir valores maravilhosos, embora ininteligíveis para mentes ocidentais e inaceitáveis para exilados amargos e despojados; que a História não conhecera nunca tanto entusiasmo, ascetismo e altruísmo, tal fé na igualdade iminente de todos nós – quando eu costumava falar assim, a minha mulher respondia serenamente: “Acho que dizes isso só para me irritar, e acho que isso não é bonito.” Mas na verdade eu falava muito sério, pois sempre acreditei que o emaranhado das nossas vidas ilusórias exige tal mudança essencial; que o comunismo criará de facto um belo mundo quadrado de indivíduos vigorosos e idênticos, de ombros largos e microcéfalos; e que uma atitude hostil perante ele é simultaneamente infantil e preconceituosa, lembrando-me a cara que a minha mulher faz – narinas tensas e uma sobrancelha erguida (a ideia infantil e preconcebida que se tem de uma vampe) sempre que se vê ao espelho.

 

[Vladimir NabokovDesespero, Editorial Teorema, (27)]

 

jpt

publicado às 16:50

E a certeza de Nabokov

por jpt, em 30.01.11

 

 

A não existência de Deus é simples de provar. Impossível de conceber, por exemplo, que um Jeová sério, omnisciente e omnipotente, pudesse empregar o seu tempo de forma tão fútil a brincar com manequins e – o que é ainda mais incongruente – restringisse as suas brincadeiras às horrorosamente banais leis da mecânica, química e matemática, e nunca – repare bem, nunca – mostrasse a sua face, mas se permitisse espreitadelas sub-reptícias e circunlocuções , e murmúrios furtivos (revelações, francamente!) sobre verdades controversas por trás das costas de alguma histérica inofensiva.


Todo este negócio divino é, presumo, um enorme embuste do qual os sacerdotes não são certamente culpados; os próprios sacerdotes são suas vítimas. A ideia de Deus foi inventada no dealbar da História por um velhaco de génio; cheira demasiado a humanidade, uma tal ideia, para tornar plausível a sua origem celeste; não quero com isto dizer que ela seja fruto de ignorância crassa; aquele meu velhaco era perito em erudição celestial – e na verdade interrogo-me sobre qual das variantes do Céu será melhor: esse deslumbramento de anjos vigilantes agitando as asas, ou esse espelho curvo em que um complacente professor de física retrocede, ficando cada vez mais pequeno. Existe ainda outra razão por que eu não posso, nem quero, acreditar em Deus, o conto de fadas acerca dele não é bem meu, pertence a estranhos, a todos os homens; está completamente encharcado pelos eflúvios pestilentos de milhões de outras almas que giraram um pouco sob o Sol e depois rebentaram; fervilha de medos primitivos; ecoa nele um coro confuso de inúmeras vozes lutando por se afogaram mutuamente; distingo nele o ribombar e o palpitar do órgão, o rugido do diácono ortodoxo, a melopeia do chantre, as lamentações dos negros, a eloquência fluente do pregador protestante, gongos, trovões, espasmos de mulheres epilépticas; vejo brilhando através dele as páginas desmaiadas de todas as filosofias como espuma de ondas há muito desfeitas; é-me alheio, odioso e completamente inútil.


Se não sou senhor da minha vida, sultão do meu próprio ser, então não há lógica nem acessos de êxtase de nenhum homem que possam obrigar-me a achar menos idiota a minha posição incrivelmente idiota: a de escravo de Deus; não, nem sequer seu escravo, mas apenas um fósforo acendido a esmo e depois apagado por uma criança inquisitiva, o terror dos seus brinquedos. Todavia não há motivos para ansiedade: Deus não existe, como não existe vida futura, truque esse que podemos arrumar tão facilmente como o primeiro.” (89-90)

 

[Vladimir NabokovDesespero, Editorial Teorema]

 

jpt

publicado às 16:28


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