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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Reli o Odisseia, devagar. Lamentavelmente ao longo da vida fui preguiçoso demais para o percorrer em francês e inglês, e sempre me recusei a ler em prosa. Só o li já graúdo envelhecido, nesta tradução de Frederico Lourenço. A primeira vez devorando-a. Agora, para aí uma década depois, fruindo-a. Antes, muito antes, ficara-me por uma qualquer daquelas pérfidas versões juvenis. Dessas que são sempre de evitar, mesmo que ainda hoje haja o costume de as obrigar na escola, de tal modo que coincidi com a minha filha, ela a sobrevoar uma qualquer adaptação. Não sou pedagogo mas horroriza-me essa prática, com toda a certeza que vale muito mais colocar os jovens a ler um naco de Homero do que uma qualquer simplificação que lhes "conta a história". Não é fazer das crianças um George Steiner, a quem o pai colocou a ler Homero em grego clássico na mais tenra infância (e viu-se no que deu). É ser capaz de pensar que os miúdos se podem divertir a ler trechos, até mirambolantes, quais jogos de vídeo. E alguns deles, um dia, continuarão.
Exagero? A narrativa oscila entre aventuras, com uma carga visual incrível, e constantes "hecatombes", entenda-se, comezainas degustadas por razões de sacrifícios rituais. Há melhor para os miúdos? É difícil ler, pois aquilo está em verso? Há algum tempo um amigo, poeta e prosador, resmungava que não tinha gostado do estilo do tradutor. Talvez, mas não tenho o conhecimento da(s) língua(s) e seus conteúdos para me meter a avaliar, e nem a sensibilidade de leitor para tamanho olho crítico. Tinha gostado muito, regostei agora (o mesmo com o Ilíada, com o qual tenho o mesmo percurso) do passo de Frederico Lourenço a mostrar-nos Homero. Viva o tradutor, vivam os bons tradutores.
Depois há outra coisa, a qual também me tinha impelido à releitura. Coisa mais para colegas, antropólogos e afins. É que aquilo é muito "nosso", um cruzar de festins (quase potlatchs, mas nem tanto) e circuitos de dádivas. E para mais, sendo um texto fundador, dizem, da literatura universal (ou vá lá, concedo em versão pós-colonial, da literatura "ocidental") bem espremido aquilo é um tratado sobre prestações matrimoniais. Tenho que ir googlar, em busca de quem tenha antropologizado sobre a matéria - será que alguém tem alguma pista para leituras?
Finalmente: gostava muito de ter a densidade cultural para poder fundamentar uma sensação havida. Mas não a tenho. Como tal, dito por mim, isto é um mero atrevimento. Mas adianto-o, assim atrevido, qual arrivista. Tudo o que se seguiu, na história intelectual europeia, vem disto:
"À deusa deu resposta o prudente Telémaco:
Mentor, como irei? Como o deverei cumprimentar?
Não tenho experiência de palavras subtis; é natural
que um jovem se iniba de interrogar um homem idoso."
A ele respondeu a deusa, Atena de olhos garços:
"Telémaco, algumas coisas serás tu a pensar na tua mente;
outras coisas um deus lá porá ..."
(Canto III, pp. 52-53)
É isso, para além de belo na leitura, é até comovente encontrar este assim, tão recuado.