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"…cheguei a um acordo perfeito com o mundo: em troca do seu barulho dou-lhe o meu silêncio…" (R. Nassar)
Hoje mesmo, sábado, cruzarei o Tejo na via do sul, buscando este "O Sol da Caparica", festival musical. Coisas de ser pai, em função de acompanhamento (escolta, se se quiser), a aproveitar, sôfrego, estes últimos tempos enquanto a mariposa não voa para o definitivamente longínquo. Tremo, um pouco, com o que acontecerá, com o que me acontecerá, pois o último festival de Verão a que fui foi a Festa de Avante, ali pelos meados dos 1980s, pouco após os meus exactos 20 anos. Fora lá desde o início, em 1976, pois o camarada Pimentel - apesar das suas suspeitas quando ao desvio de direita "eurocomunista" de Berlinguer - tal como o de Carrillo e, também, também ..., de Marchais -, acompanhara-me na FIL diante dos Area, os daquela hendrixiana "Internacional", e, no ano seguinte, deixara-me assistir a Eugenio Finardi, aí já ombreando com os míticos Fairport Convenction.
Naqueles tempos a Festa do Avante conjugava gerações, e nos anos seguintes a gente, já livre da tutela paternal, aterrava ali a beber durante três dias (e a fumar que se fartava, vá lá, que também era verdade), a "camaradar" entre nós e com os mais velhos dali, os camaradas mesmo, aqueles voluntários dos pavilhões regionais a rirem-se dos nossos efusivos "camarada" e nisso a serem camaradas, no servirem/ajudarem às cervejas e nos comes, estes mesmo para nos manterem em pé, e mesmo assim nós por vezes a desconseguirmos, que as noites seguiam já longas...
Nisso nós, e naqueles tempos tão diversos dos de agora, via pavilhões do mundo inteiro (o comunista, claro, ali propagandeado com tantas maravilhas) e do resto do país, nestes com os petiscos locais, jogava-se xadrez com os macro-grandes mestres soviéticos e ouviam-se inúmeros músicos de todos os lados, desde os desconhecidos, e alguns que músicos!!!, e os Dexys Midnight Runners (que concertão), aquele Chico Buarque (no apogeu!!, ainda que trémulo por questões lá dele, biográficas), o Manu Dibango (Manu Dibango em Lisboa naquele tempo? tão raro que me obrigou a voltar àquele Festa, já anos depois de me ter recusado a ir), o rock celta então em voga, proto-etnomusic essa que veio a ser dita world, o Ivan Lins provavelmente no melhor concerto da sua carreira (com a belíssima mulher de então, uma loura Lucinha a alumiar Lisboa), Jorge Pardo, o fantástico "corno" de Paco de Lucia, num pavilhão menor numa actuação inesquecível da qual nada recordo, Makeba sem eu saber quem era Makeba, o gigante Luis Gonzaga diante de uma audiência que não o sabia ouvir, Charlie Haden a enfrentar um público estupefacto e também Max Roach, e tantos outros, ali todos os anos polvilhados pelo discurso quase final do camarada secretário-geral, o grande Cunhal.
Foi mesmo isso, este, que me acabou ali. Pois, já cruzados os 20 anos, deu-me a azia, enorme, cansado de constatar que nenhum Sérgio Godinho, Carlos do Carmo ou Vitorino, sempre enfatuados - e ainda hoje assim seguem - com o slogan da liberdade na boca, como se dela fossem legitimados porta-vozes, dedicava alguma canção, pequena que fosse, àquele Sakharov então sob custódia, e das duras, que ninguém dos grupos de música popular ou mesmo do rock português havia lido Soljenítsin e ali o invocava, de que nem os Rão Kyao ou Telectu se lembravam do Solidariedade ou da Carta 77, que nenhum daqueles cantautores flausinos se lembrava da Albânia, de Angola, da Roménia quando cantarolavam em nome dos perseguidos na América Latina - então devastada por militares fascistas. E que o Ary dos Santos, poeta histriónico gritador de poemas diante de milhares, nunca lembrava os homossexuais perseguidos (e de que maneira) nos países que eles tanto promoviam.
Um dia - sei lá quando, mas já depois dos The Clash no Dramático de Cascais -, esperava por um qualquer grande nome, desses do concerto de encerramento após o comício do camarada Secretário-Geral, Cunhal ele mesmo, aquela apoteose ("cultural" dirão os de agora) final. Antes da arenga, e tal como todos os anos, lá se levantou a multidão a cantar o hino (sim, o bacoco "às armas") de punho direito erguido. E eu caí num "que faço eu aqui?!", qual Rimbaud entre os selvagens, ali na Ajuda, e conclui - repito, nos meus vinte anos, no início dos 1980s, bem antes da queda do Muro quando alguns descobriram que afinal..., décadas antes da internet, quando outros descobriram que afinal... - "nunca mais cá venho!" (sim, regressei, a ver o Manu Dibango, uma suspensão episódica dos princípios).
Pois aqueles gajos, mesmo aquela turba simpática, o povo d'aquém e além-Tejo, eram, e mesmo sem o saberem, pobre gente alienada (como dissera o tal Marx), e nisso o inimigo. Vil. Segui para outros concertos, paragens, convívios. Pois a "cultura" - e os arautos da "liberdade" - não moravam ali.
Volto agora à turba, decerto que para um canto do olho (e quão apaixonado!) na filha, outro no palco. E vou triste, pois sigo, reparo hoje, desarvorado, nem uma t-shirt dos Xutos tenho, e é dia deles. Irei assim quase nu. E comportando-me, que sei ser vedada à paternidade os excessos naturais diante do obrigatório, do obrigatório apenas para mim, os "meus", talvez coisa de geração. Irei pois como se pai mas já hoje preparo os antebraços para o mítico, cultual, "X", que se o punho nunca ergui aos antebraços ainda o farei, cultuando esses que ouvi quando tocavam com uns tais de "minas e armadilhas", que terei feito no mítico 31 de Julho no Rock Rendez-Vous, a gravação de um "live" que nunca existiu, há mais de 30 anos, isso porque véspera do "1 de Agosto", dia de "sacola às costas, cantante na mão", e que fiz, ali quase-só, que só o grande Hernâni me acompanhava naquele mar de gente espantada, em Maputo em 1999 e nunca mais, pois que nunca mais os vi. Vou, cultuar, agora pai mas amanhã filho, homem, para gritar "Contra tudo lutas. Contra tudo falhas. Todas as tuas explosões. Redundam em silêncio", o verso da música portuguesa .... E quem o segue, ao verso, ao resto, ao destino, é "quem já nada teme".
Porque, afinal, a tal liberdade é isto, se calhar só isto, o amarfanhado jogo dos riffs. E da desesperança, mesmo que mitigada .., isso do "a vida é sempre a perder" mesmo sabendo que nenhum de nós é "um caso isolado", nem o "único a olhar o céu", porque "quando as nuvens partirem ... vais(vamos) ver o sol brilhará" ...
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